Para se compreender o jornal "Aurora da Rua", há a necessidade de se conhecer a Comunidade da Trindade, pois o jornal reflete a prática discursiva desta forma específica de viver. Os sujeitos que nela vivem não têm consciência, por efeitos do esquecimento ideológico, das implicações que legitimam aquilo que é dito nas páginas do jornal. A singularidade do jornal não está só no formato de tabloide, no estilo de escrever as matérias, mas, sobretudo, nas concepções do homem em situação de rua, de sua fragilidade social e nas vivências psicopedagógicas do dia a dia.
A leitura exclusiva dos jornais não foi suficiente para detectar a verdadeira identidade do "Aurora da Rua"; foi preciso adotar a observação participante durante quatro anos para perceber que algumas hipóteses não se comprovavam. Muitos visitantes consideram esta experiência muito estranha, porque os moradores de rua não pedem esmolas, não recebem ajuda oficial, não tem registro de pessoa jurídica, não é um movimento social. Não é filantropia assistencialista, porque não cria passividade naquele que é acolhido pela comunidade. Só permanece quando o morador que ser ajudado, por isso assume um compromisso: participar das atividades, construir-se como pessoa, respeitar os outros. A comunidade, quando acolhe, não o faz por piedade ("coitadinho"), por higienismo como forma de limpar a cidade, mas com respeito, acreditando na reconstrução de laços afetivos e sociais perdidos.
Diferentes fios discursivos formam uma tessitura capaz de explicitar esta simbiose entre o discurso do jornal e a prática discursiva da Comunidade da Trindade a partir da memória e do interdiscurso como uma constante reverberação no intradiscurso. Por influências de ordens religiosas (franciscanos, dominicanos, beneditinos, etc.), a Comunidade da Trindade vive um despojamento material, um espírito de solidariedade como viviam os peregrinos das primeiras comunidades cristãs da civilização ocidental. Neste período, predominavam, na figura do Jesus histórico, o cinismo, o estoicismo e o judaísmo. Segundo Mack (1994, p. 15), no seu livro: "O Evangelho perdido: o livro de Q e as origens cristãs", Jesus era um judeu cínico, por isso ele fez opção pelos pobres, vivia como um peregrino, nasceu numa gruta em Belém, não aceitava a hierarquia religiosa judaica. Predominavam, na região da Galileia, a cultura helenística (grega), sobretudo nas cidades de Séforis e Teberíades, perto de Nazaré onde viveu Jesus, a cultura judaica, em particular os essênios que viviam no deserto, os zelotes que eram nacionalistas e não aceitavam a presença dos romanos.
1. CINISMOS ("KYNISMO")
Foi uma escola filosófica grega criada por Antístenes, seguidor de Sócrates, aproximadamente no ano 400 a.C., mas seu nome de maior destaque foi Diógenes de Sínope. Estes filósofos menosprezavam os pactos sociais, defendiam o desprendimento dos bens materiais. Um cínico não tinha nenhuma
propriedade e rejeitava todos os valores convencionais de dinheiro, fama, poder
ou reputação. Uma vida vivida de acordo com a natureza requer apenas as
necessidades básicas necessárias para a existência, e qualquer um pode
tornar-se livre ao libertar-se de todas as necessidades que são o resultado da
convenção. O símbolo do cinismo era o "cão" ("kion" em grego, daí o nome "kynismo"), por isso Diógenes era conhecido como "filósofo cão".
Diógenes com sua lâmpada, dentro de um barril de vinho |
ARGUMENTAÇÃO CÍNICA
- Farresia - dizer a verdade mesmo que isto custasse a própria vida como fez o Sócrates. A morte não é um demérito quando se diz o que pensa, pois é sinal de virtude e de coragem.
- Vida não dissimulada - “vida da qual não se envergonha porque não tem de se envergonhar” “Não há intimidade, não há segredo, não há publicidade na vida do cínico”
- Vida sem mistura - “A verdadeira vida é sem vínculo, sem dependência, o que significa pobreza”. A pobreza cínica é um despojamento que se priva de elementos materiais. “Ela não é a aceitação da pobreza, ela é um conduta efetiva de pobreza”
- Vida reta - “ Só o que é da ordem da natureza é que pode ser um princípio para definir a vida reta para os cínicos.”
- Vida soberana – “É o mesmo ato fundador de tomada de si que vai dar o gozo de mim mesmo e, por outro lado, permitir ser útil aos outros quando eles estão em dificuldades ou na desgraça”(FOUCAULT,2011,p.221-236)
LEGADO CÍNICO
Os filósofos cínicos andavam tanto na periferia das cidades como nas zonas rurais, descalços, com bastão como se fosse uma arma, usavam um manto com duas dobras, uma bolsa típica de mantimentos, barba e cabelos longos e desarrumados. Segundo Branham (2007), a produção literária dos cínicos significou a renovação de formas de discursos orais, transformando os gêneros tradicionais como a epístola, os tratado numa forma burlesca, abusando das paródias, da escrita aforística. Além disto, "desfigurar a moeda corrente" numa referência à vida de Diógenes é outra marca dos cínicos. "O moto cínico faz do chiste, da paródia e da sátira não apenas ferramentas retóricas úteis, mas indispensáveis constitutivas da ideologia cínica como tal" (BRANHAM, 2007, p. 107). Isto influenciou, no Renascimento, a criação de obras como "Gargantuá e Pantagruel" de François Rabelais ou a obra: "O sobrinho de Rameau" de Diderot no séc. XVIII.
O cinismo, no sentido grego, influenciou muitas manifestações culturais no mundo ocidental:
a)Posteridades religiosas: ASCETISMO CRISTÃO
A opção pelos pobres, a preocupação moral de comportamento, o despojamento material marcaram os primeiros cristãos. Nesta época, não havia ainda a marca do "reino de Deus" ou a visão escatológica do fim do mundo. Cristo peregrino andava pela zona rural da Galileia com túnica, descalço, sem qualquer cajado, sem dinheiro ou mochila para carregar mantimentos. Influenciou as ordens religiosas mendicantes ou não como os franciscanos, os beneditinos, etc. Os dominicanos ("canes domini") eram conhecidos pela expressão: "cães do senhor".
Os estoicos ("estoicismo") foram os herdeiros do cinismo e, usando a razão, retiraram os excessos irracionais deste pensamento filosófico: a autofagia, o incesto, atos agressivos como urinar nas ruas, defecar, etc. Epíteto foi um dos mais contribuiu para a popularização do cinismo no império romano. O cristianismo primitivo absorveu tudo isto, porque os cristãos se lembravam de Jesus, usando parábolas, aforismos, relatos orais, metáforas ligadas à natureza, com a intenção de construção de "nova vida" como faziam os cínicos. Os pagãos pensavam num cuidar de si e alcançar a felicidade; os cristãos acreditavam numa outra ética de viver em oposição à visão farisaica de muitos judeus. "Ide;eis que vos envio como cordeiros entre lobos. Não leveis bolsa, nem mochila, nem calçado e a ninguém saudeis pelo caminho...Permanecei na mesma casa, comei e bebei do que eles tiverem...Não andeis de casa em casa." (Lucas, 10, 3-7).
Neste fio discursivo, é impossível não imaginar como o interdiscurso funciona como uma força motriz, pois, ao se analisar o que é dito nas reuniões de pauta, nas oficinas de textos ou mesmo na leitura do jornal "Aurora da Rua", percebe-se que, no discurso lido existem ressonâncias ou reverberações de outros discursos do passado. Sente-se a presença da "Teologia da Libertação", lançada na América Latina por Gustavo Gutiérrez, como uma resposta aos anseios de libertação das classes oprimidas, das comunidades eclesiais de base de onde nasceram muitos movimentos sociais na defesa de direitos fundamentais, a exemplo, de moradia, de material reciclável, etc. Atualmente, a figura do Papa Francisco vem resgatando este antigo despojamento material, esta opção pelos pobres, criticando a ostentação de bispos, a suntuosidade das igrejas. Recentemente, mandou construir banheiros, na Praça São Pedro, no Vaticano, para os moradores de rua.
b) Posteridades políticas: a revolução como estilo de existência
O cinismo ajudou a desenvolver o "militantismo", durante os séculos XIX e XX, na medida em que estimulou a ruptura das convenções, dos hábitos e dos valores da sociedade burguesa, sobretudo, após a Revolução Industrial. Com a descoberta da exploração do homem pelo próprio homem, surge a necessidade de criação de uma socialidade secreta, de uma organização instituída (partidos políticos, sindicatos de trabalhadores) como forma de defender "estilos de existência" diferentes.
Outro elemento significativo é o testemunho de vida como uma forma de contestação que se materializa na obra literária como o realismo materialista de Dostoievski, a denúncia do genocídio de Canudos por Euclides da Cunha em "Os Sertões" ou mesmo a denúncia do brasileiro abandonado pela República Velha nas obras de Monteiro Lobato, sem falar da denúncia do preconceito de cor e da vida pobre suburbana na cidade do Rio de Janeiro por Lima Barreto.
c) Posteridades estéticas: a arte moderna
A contestação cínica das convenções sociais influenciou também a irrupção da arte moderna no sentido de priorizar a ordem do desnudamento, do desmascaramento, da decapagem, da escavação da redução violenta ao elementar da existência. Compreende desde a rebeldia de Baudelaire, o realismo social de Flaubert, a carnalização de Bakhtin até os movimentos de contracultura na década de 60, o Pau-Brasil e Antropofagia de Osvald de Andrade de 1924/1928, o Tropicalismo de Caetano Veloso, a Literatura Divergente de Nelson Maca.
Conclusões
Os textos do jornal "Aurora da Rua" no formato de oito secções lembram a forma dos textos cínicos, pois resultam de relatos pessoais, histórias de vida, depoimentos de moradores de rua que se transformam em diferentes tipos textuais (argumentativos, descritivos, injuntivos, narrativos, expositivos) e gêneros discursivos (editorial, texto de opinião, crônica, tirinha). O conteúdo não contém sátiras, diatribes, polêmicas, mas não deixa de ser uma grande ironia ao provar que um jornal alternativo pode sobreviver sem as amarras do capitalismo neoliberal que atrela tudo ao lucro, ao marketing e à publicidade sem limites; prova também que uma comunidade de pessoas pode ser feliz sem a magia do consumismo ou da competição inconsequente.
A identidade do jornal "Aurora da Rua" não decorre de um movimento social, de uma parceria com a política pública de assistência aos moradores de rua, de uma filantropia institucional religiosa ou não, de uma conscientização político-partidária, de uma filosofia de autoajuda, mas da opção pelos pobres que se encontra nas origens do cristianismo, do cinismo grego em que a pobreza não é uma fatalidade, nem é castigo dos deuses. Não os culpabiliza, tampouco aceita o discurso da vitimização, do assistencialismo, do higienismo. Não incute revolta, nem aceita o sofrimento como expiação; ao contrário, transforma-o num aspecto positivo, porque é a possibilidade de construir uma nova vida, refazendo laços afetivos e sociais e, assim, encontrar a felicidade como já o fizeram Cristo ou Diógenes. "Bem-aventurados os que têm um coração de pobre, porque deles é o reino dos céus! Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados" (Mateus, 5, 3-4).
A propósito, neste mês de janeiro (18 a 25), vai acontecer uma peregrinação no Recôncavo baiano, lembrando o peregrino Francisco da Soledad, que desceu o rio Paraguaçu até Bom Jesus da Lapa no século XVIII. Saindo de Salvador no saveiro "Sombra da Lua", ela começará em São Francisco do Paraguaçu, passa por Santiago do Iguape, Cachoeira, Maragogipe até Cruz das Alma
Vejamos o que está escrito no folheto de divulgação, pois há muita semelhança com as antigas peregrinações: "A cada dia, peregrinaremos a pé de uma comunidade para a outra.
Viveremos estas caminhadas na mística dos peregrinos: elas serão para nós, peregrinos e peregrinas, o chão da experiência de Deus. Faremos do nosso peregrinar uma oração, e da nossa oração um peregrinar interior. É no caminho, nas voltas do caminho, nos “inesperados de Deus” do caminho que Deus se revelará, nos falará.
A peregrinação é vivida sem nenhum sustento próprio, fiel à mística dos peregrinos. Peregrinaremos portanto “sem levar dinheiro no bolso nem na cintura”, conforme o evangelho. Experimentar durante uma semana este despojamento radical pode tornar-se uma profunda experiência de Deus. É se propor a “ter como única confiança, única esperança, única segurança Deus e só Deus”, como o escreveu Inácio de Loyola, peregrino"
Referências
FOUCAULT,
Michel. A
coragem da verdade:
o governo de si e dos outros II- curso no Collège de France (1983-1984). São Paulo:
Editora WMF Martins Fontes, 2011.
BRANHAM, R. Bracht. Desfigurar a moeda. A Retórica de Diógenes e a invenção do conismo. In CAZÉ, M.O. Goulet e BRANHAM, R. Bract. Os Cínicos. São Paulo, SP: Edições Loyola, 2007.
CAZÉ, M. Odile Goulet e BRANHAN, B (Orgs.) Os cínicos. São
Paulo: edições Loyola, 2007.
MACK, Burton L. O Evangelho Perdido: o livro de Q e as origens cristãs. Rio de Janeiro: Imago, 1994.
ONFRAY, Michel. Cynismes: portrait du philosophe em chien.
Paris: Éditions Grasset
& Fasquelle,
1990.
SLOTERDIJK, Peter. Crítica
da razão cínica.
São Paulo: Estação Liberdade, 2012.
SAFATLE,
Vladimir. Cinismo
e falência da crítica. São
Paulo: Boitempo,
2008
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