quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

JE SUIS "AURORA DA RUA": EUROCENTRISME C' EST FINI


      Recentemente, o mundo foi surpreendido pelo massacre do "Charlie Hebdo", jornal satírico francês satírico. O atentado terrorista aconteceu em 7 de janeiro de 2015 em Paris, cujo resultado foi a morte de doze pessoas e cinco feridas gravemente. Em nome da liberdade de expressão, o jornal satirizava valores religiosos, políticos ou sociais, especialmente a figura ícone do Islamismo: Maomé, o que provocou a ira do Estado Islâmico que enviou os irmãos Saïd e Chérif Kouachi, vestidos de preto com fuzis Kalashnikov à sede do semanário para a execução dos cartunistas. 
         Diante da comoção mundial, algumas reflexões são necessárias, porque ninguém aceita a morte de pessoas que defendiam ideias que eram contrárias ao nosso pensamento. O que está em jogo é a democracia como opção política burguesa para o Mundo Ocidental, porque, sem os valores da liberdade, da igualdade, a barbárie prevalecerá sobre a civilização. Isto me lembra a frase de Voltaire: "Eu discordo do que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo." A reação foi imediata: o mundo passou a usar a expressão "Je suis Charlie Hebdo", inclusive o jornal "Aurora da Rua" por iniciativa do cartunista Paulo Serra em homenagem aos cartunistas mortos.


       Por outro lado, as pessoas não têm o direito de, mesmo falando de liberdade de expressão, ofender valores culturais dos outros. Do ponto de vista do discurso, existe um controle ou uma regulação de sentidos a partir de uma formação discursiva determinada, o que pode gerar três tipos de comportamento: acomodação, cooperação ou o confronto. A reação do terrorismo é o confronto, porque as nações que foram colonizadas e subjugadas anos a fios pela cultura europeia não aceitam mais o eurocentrismo, ditando normas  se achando cultura superior. Não somos a favor do terrorismo, mas é petulante a Europa considerar barbárie a ação  destes fanáticos islâmicos quando Portugal e Espanha foram dois países genocidas, pois mataram sem piedade os índios na América Latina. A França foi sanguinária na colonização nos países do norte da África. 
       Esta arrogância ainda vai custar muito caro. No século XVI, os portugueses achavam que os índios não tinham alma, eram animais que precisavam ser civilizados de acordo com seus valores e, em seguida, impuseram a roupa, a sífilis, a gonorreia, o sarampo, o cólera. No período colonial, a Santa Inquisição, após rito sumário, matou, desterrou muitas pessoas por bruxaria, sodomia, roubo, mas não conseguia punir a luxúria e a ganância do clero regular e religioso da Igreja. No século XX, criaram o "eugenismo" que enaltecia a raça branca e desprezava o negro, o amarelo ou o mestiço. 
              


        Hoje se vive numa época em que a identidade do sujeito é múltipla, não existe a centralidade do sujeito, construído a partir de valores metafísicos rígidos. A crença na razão, na ciência, no eurocentrismo, nos conceitos de Estado-nação é substituída pelo conceito de "modernidade líquida" segundo Baumam. Com o estudos culturais, descobre-se que as forças de resistência da periferia urbana na forma de gênero, de sexo, de cultura são fontes vivas de poder a questionar a estrutura hegemônica de poder estatal e de classe. À globalização perversa de cima para baixo, é possível construir uma outra globalização de baixo para cima, valorizando aquilo que representa a cultura popular, no mesmo sentido de carnavalização de Bahktim ou do "homem ordinário" de Michel Certeau." Tais expressões da cultura popular são tanto mais fortes e capazes de difusão quanto reveladoras daquilo que poderíamos chamar de regionalismos universalistas, forma de expressão que associa a espontaneidade própria à ingenuidade popular à busca de um discurso universal, que acaba por ser um alimento da política" (SANTOS, 2001, p.144).
     Isto já vivemos na literatura brasileira quando em 1928 Osvald de Andrade, misturando o primitivismo e a influência externa, criou a antropofagia que influenciou o tropicalismo de Caetano Veloso e o Cinema Novo de Glauber Rocha. De modo semelhante, o jornal "Aurora da Rua", criado a partir da realidade dos excluídos: os moradores de rua em Salvador, apresenta uma proposta de vida, baseada no despojamento material, na solidariedade e na autossuficiência como forma de sobreviver numa sociedade capitalista. Mesmo sendo um jornal alternativo, sem publicidade, regional e periférico, ele acredita que um morador de rua, antes de ter casa própria e inserção social, precisa de soerguimento moral, psicossocial, portanto aplicável em qualquer parte do mundo. Por tudo isto, eu sou "Aurora da Rua" (Je suis "Aurora da Rua") que não tem medo de terrorismo político, porque convive diariamente com o terrorismo social institucionalizado ou difuso de uma sociedade de consumo que considera o morador de rua como refugo humano que deve ser morto ou jogado no lixo. 
                


segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

A MEMÓRIA DISCURSIVA E AS FORMAS DE SILENCIAMENTOS NO (SOBRE) DISCURSO DO MORADOR DE RUA

   Cresce a importância de descrever como se constitui a identidade e a subjetividade do morador de rua, não só a partir do fio discursivo do que é dito, da memória discursiva, mas também da prática discursiva da vida em comunidade, dividindo tarefas, trabalhando com artesanato, material reciclável ou vendendo o jornal.
    O interdiscurso na forma de “pré-construído” como aquilo que diz em algum lugar interfere na própria formulação do intradiscurso, portanto na produção dos sentidos e na construção da subjetividade do sujeito. Neste sentido, três formas de representação sobre o morador de rua reverberam do passado no discurso do jornal "Aurora da Rua", ressignificando cada prática discursiva com novos sentidos: a representação que a sociedade faz sobre o morador de rua, a representação que o próprio morador de rua faz de si mesmo e a representação que o jornal "Aurora da Rua" faz sobre o próprio morador de rua.
        O silêncio, segundo Orlandi (2003) é fundador quando se refere ao "não-dito", produzindo as condições para significar. O silêncio constitutivo é aquele que nos indica que, para dizer, é preciso não dizer. Há também  o silêncio local que se materializa em forma de censura numa determinada conjuntura. No discurso do jornal "Aurora da Rua", estas formas de silêncio funcionam sozinhas ou entrelaçadas.

 
Os pobres moravam em casas de sapé cobertas com palha

1. REPRESENTAÇÃO DA SOCIEDADE SOBRE OS MORADORES DE RUA ATRAVÉS DOS TEMPOS


             Na Idade Média, os mendigos, os pobres e os vagabundos já faziam parte e causavam piedade ou repulsa por parte da população. No Brasil-Colônia, Tomé de Sousa chegou à Bahia em 1549 para fundar a cidade com 400 vagabundos vindos de Portugal. Não trabalhavam, porque achavam que o trabalho braçal era coisa de escravos. Juntos com os mendigos, doentes formavam uma população perigosa, arruaceira. Salvador era uma cidade, além de suja e corrupta, cheia de mendigos e vadios, era também violenta” (Risério, 2004, p.262).
      “A presença de uma multidão de pedintes pelas ruas sempre foi vista como ameaça à ordem social. O século XIX produziu diversos momentos em que os mendigos foram vistos como verdadeiros vilões. Nestes instantes, a piedade cedia lugar à repulsa e à intolerância” (FRAGA FILHO, 1996, p. 41). Esta representação se reproduz na sociedade contemporânea que detesta e até mata os moradores de rua. Esta repulsa já advém da memória discursiva coletiva e se manifesta num silêncio reprovador desde o período do séc. XIX. "Já não se podia mais admitir  que homens , mulheres e crianças vagassem pelas ruas da cidade, ocupassem  vias públicas com suas roupas esfarrapadas,  seus corpos sujos, feridas abertas e sua linguagem recheada  de "palavras indecentes". Eles deveriam ser confinados em instituições criadas para este fim" (FRAGA FILHO, 1996, p. 59). Daí surgiram os albergues, as internações compulsórias, os asilos, etc.

   2. REPRESENTAÇÃO DOS MORADORES DE RUA SOBRE SI MESMOS

             As experiências negativas gravadas na memória como a história de vida, os preconceitos, o abandono social, a desestruturação da família, o desemprego, o alcoolismo reverberam nas construções discursivas dos moradores de rua quando falam de si mesmos. Nem tudo eles podem dizer ou revelar por vergonha ou medo, por isso há um silenciamento instintivo que o obriga a escolher lembranças seletivas por um sentimento de autoproteção. Vejamos alguns depoimentos:


O silêncio significa  mais do que palavras

          Minha entrada no mundo das ruas foi através do álcool. Quando era criança, aos sete anos de idade, minha mãe passava o dedo no copo de cachaça e passava na minha boca, aí aos nove anos eu já estava numa situação de alcoólatra, então resolvi vir para Salvador, meus familiares me descobriram que estava em Salvador, mandaram me buscar e levaram de volta. Mesmo assim, sofri muito e minha mãe me abandonou. Foi aí onde fui morar nas ruas e viver em liberdade.Apareceu, então, um corte de cana, pois eu estava em São Paulo. Subi num ônibus e fui trabalhar no corte de cana. Pensando que eram mil maravilhas, mas o que aconteceu pra mim foi a pior misera na minha vida. Não tinha dinheiro pra voltar pra casa, o jeito foi morar nas ruas em São Paulo. Eh... eh.. levei 16 anos nessa vida, né..., dormindo debaixo de marquises, debaixo de viadutos, nos bancos da praça. Onde dava pra dormir, eu dormia, botava meu colchão, meu papelão, meu lençol e ali ia dormir.
           Aqui em Salvador, eu dormi aqui...aqui...no comércio, mas em São Paulo eu dormi na Praça da Sé, no Minhocão, não faltava lugar em São Paulo. Acordava com jato d’água, pontapé por parte dos guardas municipais, mas....mas...o duro era quando você via um tiroteio de polícia com bandidos, você tinha que buscar um lugar pra se esconder...Muitos amigos meus já faleceram por causa disto e....Hoje dou graças a Deus por não estar mais nessa vida, por ter saído dessa vida...sofrida....e...peço a Deus que ilumine o caminho  destes moradores de rua, que possam também sair desta vida...não foi uma vida fácil, foi uma vida dura (Entrevista com Sidney).
              
O rosto da dor, da solidão, do abandono
A... a princípio, a primeira vez que fui para situação de rua foi por conta do que...chamam de... “rompimento  do.. dos laços familiares” como alguns falam, existem alguns termos técnicos pra definir isto, mas... enfim... que... que me levou a ter que morar com tios e, enfim, com outros familiares que não os meus pais e, posteriormente, a ter que cair no mundo como... boia fria com minha irmã e, na época, o atual marido dela. E depois, quando a gente foi pra São Paulo, ficar (mos) literalmente em situação de rua porque a gente morava debaixo do viaduto na cidade de São José dos Campos (SP), certo? Eh...estando em situação de rua, a manutenção da situação, ela foi feita basicamente através do contato com as drogas, né? Logo que cheguei a São José dos Campos, morando debaixo de viadutos, tive.... o meu primeiro contato com as drogas... é... com 12 anos de idade e, a partir daí....ela....ela. enfim...esse mundo se abriu e foi sendo, foi se tornando o meu mundo  (Entrevista com Wesley).


 3 REPRESENTAÇÃO  DO JORNAL "AURORA DA RUA" SOBRE O HOMEM EM SITUAÇÃO DE RUA


             Se fosse hoje, Jesus nasceria desta barriga

          Lendo as páginas  do jornal "Aurora da Rua", a formação imaginária  sobre o homem de rua é oposta à que a sociedade tem sobre ele. Não o denomina de marginal, vagabundo, mas mantém uma atitude de respeito devido ao sofrimento, à fragilidade social. Não o considera um "coitadinho", que desperta o sentimento de compaixão como exercício de uma piedade cristã, nem o acolhe por uma visão assistencialista, filantrópica, exigindo dele obediência e passividade. O jornal não é uma instituição de caridade, apenas um veículo de informação popular e alternativo no intuito de expor o pensamento, as contradições de quem mora nas ruas e de ser uma fonte de geração de renda para aqueles que querem uma nova forma de viver. Não  tem a pretensão de ser "a voz do povo da rua" como se fosse uma força externa superior, capaz de resgatá-lo da miséria, como pensa certa camada acadêmica, mas mostrar à sociedade que o morador de rua pode ser o senhor de sua história, sem as bengalas do Estado ou da Igreja,  pois o jornal é feito por ele. A propósito, leiamos um fragmento da edição acima que aborda a questão da gravidez na rua:

     " A gravidez é, segundo a maioria, o momento mais delicado quando o lar é a rua. Mulheres que viveram esse momento tão delicado, contam como elas conciliaram o estado de vulnerabilidade e o momento sublime, e ao mesmo tempo angustiante, da gestação" 
 (Aurora da Rua, dez/2014 e jan/2015, Ano 8, nº 47, p. 4)

            Em seguida, seguem relatos de mulheres que, apesar das drogas, da violência, do abandono, dos abusos sexuais, da falta de assistência, souberam proteger seus filhos, apelaram para os Conselhos Tutelares, instituições específicas ou a própria família e se comportaram como guerreiras que acreditam ainda no amor e na capacidade de superação que não encontra em muitas mulheres de classe média com maior poder aquisitivo. 
         Diante deste discurso, é possível encontrar algum tipo de controle?  Por efeito ideológico, nem tudo se pode dizer ou fazer a partir da posição discursiva selecionada pelo enunciador, o que nem sempre significa censura. O silêncio é constitutivo da linguagem, mas o silenciamento é próprio do discurso, porque, ao escolher dizer de uma forma, estou excluindo outras possibilidades. Nesta edição, o leitor não encontra nenhum relato negativo, de gravidez frustrada ou subtração dos filhos, nem faz proselitismo político, denunciando a omissão de órgãos públicos.
           É um jornal com uma proposta inteligente e humana, pois discute uma questão social da gravidez nas ruas sem sensacionalismo, mostrando a todos que existe uma forma de ser feliz tendo quase nada, ao contrário daqueles que têm tudo, mas preferem a banalidade, o consumismo, a arrogância à decência, à simplicidade da vida como faziam os "cínicos" diante da estupidez de vida da elite na antiga Atenas.
              Há um mês, comemoramos o Natal que relembra o nascimento de Jesus numa gruta em Belém como um fato histórico. Se o menino Jesus tivesse que nascer hoje, ele preferiria nascer numa barriga de uma moradora de rua, tão pobre quanto ele, como acontece todo dia debaixo dos viadutos, nos mocós da vida, sem direito a reis magos, a estrela do oriente, mas com direito à perseguição dos Herodes modernos: os preconceitos, a indiferença social, os conselhos tutelares, o juizado de menores, porque querem retirar  filhos deles para a adoção em nome do Estado ao invés de dar-lhes uma vida digna.





                    

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

DISCURSO E PRATICA SOCIAL NA CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS NO JORNAL 'AURORA DA RUA' (3)


         No intuito de identificar os traços distintos do jornal "Aurora da Rua", foi importante elaborar um estudo comparativo com outro jornal de rua, publicado em Porto Alegre, chamado de "Boca de Rua", fundado no ano  de 2000 pela ALICE (Agência livre para informação, cidadania e educação), uma organização não-governamental sem fim lucrativo que tem como objetivos desenvolver projetos alternativos e autogeridos de comunicação para discutir comportamento, ética e tendências da imprensa, formar leitores críticos e contribuir para democratizar e qualificar a informação no Brasil.


VOZES DE UMA GENTE INVISÍVEL

         O povo da rua passa fome, não tem onde morar,  dorme na beira das calçadas, debaixo da ponte, dentro dos esgotos, em cima dos banheiros públicos, nos carrinhos de papelão ou em casarões abandonados. Mas o povo da rua fala. O povo da rua tem boca. 
           Tem famílias inteiras moran­do na rua, mas tem gente também que veio para a rua porque fugiu da família. Não queriam ficar com a família porque eram esculachados, apanhavam. Os mais fracos morrem. Os outros passam tudo que é tipo de dificuldade. No inverno, por exemplo, morre muita gente porque não tem cobertas, a roupa é pouca e o atendimento médico não existe.  O que mais dá é Aids, tuberculose, dor de dente e bala de revólver.
        A fome é o pior. Aí o primeiro recurso é roubar, mas também pedem nas casas,  pedem emprego. Tem gente que xinga, mas tem os que ajudam. Dão comida, dão roupa. Tem uns que até ensinam a ler. Também tem a violência da polícia e até da população. Mesmo entre o povo das ruas existe violência. 
         Hoje em dia as pessoas têm medo de dormir dentro de caixas de papelão no inverno porque acontece bastante de tocarem fogo nas caixas. As vezes, são os boyzinhos, mas, outras vezes, é a gurizada da rua mesmo, que está de marcação ou uma criança pequena que cheirou loló e "viajou" Para eles, tudo é festa. Quem mais sofre são as pessoas velhinhas. Mas também na rua se aprende a respeitar as coisas dos outros, a mulher dos outros.
           Tem muita droga flama. Tem droga dia e noite. E um passatempo para fugir dos problemas e da fome Tem de tudo: loló, maconha, cocaína. Cada vez mais a cocaína. Injetam, cheiram, fumam pedra de crack. Para conseguir dinheiro para droga assaltam, fazem arrombamento. Alguns são usados como "aviãozinho" pelos traficantes. Ninguém sabe ao certo quantas pessoas vivem na rua. Tem gente que se esconde em uns buracos que ninguém sabe que existe.
            Mas o povo da rua não é invisível. Quem faz o povo da rua invisível é a sociedade que passa e nem olha. Enquanto o cara não trabalha, é como se não existisse. Está marginalizado. Mas é difícil conseguir trabalho porque a maioria tem só a quarta série. Muitos são analfabetos e não têm documento. 
            Por tudo isso, este jornal vem para transmitir o que se passa com o pessoal que convive nas ruas. Nós, da equipe do jornal, fazemos questão de usar esta palavra "convive" e não "vive" nas ruas. Para nós, não existe guri de rua. Porque da rua todo mundo é. Todo mundo sai para a rua para trabalhar, para passear.
           Acreditamos que o Boca de Rua vai ser importante para os que convivem nas ruas, porque será a sua voz. Também para a sociedade vai ser importante, porque vai botar na cabeça das pessoas o pensamento do pessoal que convive nas ruas. O jornal vai mostrar que nunca ninguém está completamente certo. Tem pessoa que se acha "o cara", mas não é. Ninguém é. Se viesse para a rua não seria ninguém.
                Como disse o Jim Morrison (líder do grupo de rock The Doors): "Mesmo o relógio parado está certo duas vezes por dia" (BOCA DE RUA, Ano I, número 0, dezembro 2000).

                              VOZES DA RUA:  ANÁLISE DO TEXTO

            Este texto abre o primeiro número do jornal "Boca de Rua (2000) cuja título contém uma sugestão cínica: "Vozes de uma gente invisível". A descrição do povo de rua que não tem onde morar, dorme na beira das calçadas ou debaixo dos viadutos se parece com os cínicos que viviam nas ruas de Atenas, pedindo esmolas, mas que não aceitavam as convenções sociais que os qualificavam de imundos, ignorantes. Só que eles pensavam, filosofavam e rosnavam como cães à semelhança de Diógenes ("Mas o povo da rua fala. O povo da rua tem boca"), para mostrar aos atenienses a estupidez de suas vidas.
               No segundo parágrafo, usando o estilo indireto livre, coexistem duas vozes: a do próprio morador de rua gaúcho e a do narrador- enunciador que descrevem a sua triste realidade sem qualquer forma de dissimulação ("veio pra rua porque fugiu da família... Os mais fracos morrem... O que mais dá é Aids, tuberculose, dor de dente e balas de revólver"). É visível a preocupação com a verdade (parresia), o que lhe dá ânimo para enfrentar as adversidades.
              No terceiro parágrafo, verifica-se a liberdade no registro popular da linguagem quando usam o verbo "ter" no lugar de "existir" ( "Tem gente que xinga...Tem uns que até ensinam a ler") como o tom crítico e irônica quando fala de violência da polícia, do próprio povo de rua. Há uma preocupação de denunciar o abandono social, o que não se faz  no jornal "Aurora da Rua".
          No quarto parágrafo, o morador de rua explicita duas formações discursivas antagônicas através da sua formação imaginária. Quando diz que ninguém mais quer dormir em caixa de papelão, porque podem tocar fogo nela, é uma alusão ao higienismo social: matar as pessoas de rua como forma de resolver o problema da exclusão. Simultaneamente, é condescendente com as crianças que cheiram "loló",  com a fragilidade dos velhinhos como revela um lado positivo: aprende-se a respeitar as coisas dos outros, a mulher dos outros. Tudo isto está sendo revelado e analisado devido à existência do jornal "Boca de Rua", que lhes dá visibilidade.
                As condições de produção do jornal "Boca de Rua" se diferem daquelas do jornal "Aurora da Rua", porque os moradores de rua não dispõem de um lugar fixo para as reuniões. Não existe uma comunidade como suporte. Nas reuniões, os mediadores discutem com eles a realidade cotidiana como está descrita: "Tem muita droga flama. Tem droga dia e noite. E um passatempo para fugir dos problemas e da fome Tem de tudo: loló, maconha, cocaína" (5º §). É um relacionamento difícil que exige muito controle e paciência.
                 A consciência crítica aflora (" o povo da rua não é invisível") a partir dos textos e das leituras, dos relatos compartilhados, por isso o jornal "Boca de Rua" passa a dar oportunidade de os moradores de rua expressarem seus pensamentos e sofrimentos. Na produção textual, pela opção pelo estilo indireto livre, a realidade é vista pelo olhar do morador de rua, por isso os nomes dos colaboradores são mencionados no final de cada matéria. Os dois se assemelham muito, mas são diferentes na forma de encarar o mundo da exclusão e na forma de escrever os textos. 
                    No jornal "Aurora da Rua", predomina o estilo indireto em que o narrador diz o que acontece com os personagens, mesclado com o estilo direto em que se reproduz a fala do morador de rua. Veja este fragmento falando sobre "Rua, minha Casa":
  "Nós andamos em becos, ruazinhas, lugares esquecidos, antigos. Quem conhece mais Salvador do que os próprios moradores de suas ruas? O nome já diz morador de rua, moramos aqui, vivemos aqui, todos os dias". A reflexão de Edmarcus faz sentido. Diferente da maioria dos outros países que conceituam essa população pela falta de um teto, o Brasil a define como moradores de rua - um termo que não remete à carência e ainda revela a potencialidade daquilo que são: susjeitos que vivem e experimentam a cidade.






segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

DISCURSO E PRÁTICA SOCIAL NA CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS NO JORNAL "AURORA DA RUA" (2)


           Não há distanciamento entre o discurso do jornal "Aurora da Rua" e a prática discursiva da Comunidade da Trindade nas atividades de interação entre as pessoas, no cuidado com a natureza, presente nos jardins no fundo da Igreja Santíssima Trindade como no horto interno entre as casinhas onde abrigam moradores de rua casados, nos momentos de trabalho ou de lazer como as idas e vindas da Trindade do Mar, em Veraz Cruz. Vejamos o texto abaixo:

                           Que tal comermos fora? ( texto)
    Moradores de rua exibem  suas habilidades culinárias e revelam  os segredos de cozinhar nas ruas.

A imagem de pessoas reunidas à mesa para partilhar o alimento sempre foi símbolo de comunhão. Para grande parte das famílias, a refeição é o lugar de encontro que nutre o corpo e aquece os laços afetivos. Nas ruas, alimentar-se também pode receber um significado que ultrapassa a satisfação do apetite. Muitos moradores de rua assumem a liderança da culinária e conseguem proporcionar momentos de união através de uma comida peculiar feita de improviso e reciclagens. São tantos caprichos que dá até para brincar dizendo: “Que tal jantarmos fora hoje?”. 
    O fogão é o fogo a lenha. A panela pode ser um latão. A água natural se consegue em qualquer posto de gasolina. Os alimentos são arrecadados com a partilha em grupo. Cada um fica  fica responsável em conseguir um ingrediente. Eles inovam a arte de cozinhar e mostram que para um bom prato de comida nas ruas, o importante mesmo é a cooperação. “A minha equipe da Baixa dos Sapateiros tinha umas 28 pessoas. Todos faziam correria. No final, dava um a panelona de comida”, lembra Jailton.
    Toda culinária representa parte da cultura do seu povo. O modo de cozinhar criado pelo povo de rua revela características do seu próprio estilo de vida. Nem sempre há os utensílios e os espaços necessários para se fazer boas receitas. Mas como a precariedade não é maior do que o engenho dos moradores de rua, eles sempre reaproveitam o que encontram para substituir aquilo que precisam. “Transformamos garrafas Pet em vasilhas,  latas em panelas, recuperamos verduras caídas das barracas de feira. Nada se perde em nossas mãos” explica Robson
     Portanto, há muitos motivos para a preferência dos moradores de rua continuar fazendo a comidinha feita por eles. O preparo é simples, genuíno e digno. O fogo, além de dar um sabor especial, aconchega e ainda aquece do frio da noite. “É melhor do que comida de restaurante porque rende, você se serve à vontade e sai mais barato”, diz Elias com a experiência de quem já provou muitas comidas de rua. (Aurora da Rua, fev./mar 2009, Ano 3, nº 12, p. 4-5)

                           KYNISMO NO TEXTO E NA COMIDA DE RUA

            A expressão "Vamos comer fora"? contém um conteúdo de ironia e de sarcasmo por seu caráter ambíguo, pois, para o morador de rua, ela significa literalmente comer nas ruas em oposição ao sentido conotativo da classe dominante que entende isto: comer em restaurantes da moda ou de famoso glamour. Esta visão antitética de pobreza absoluta diante da riqueza e do desperdício nos remete ao tom de zombaria e de escárnio dos kynistas (cínicos) às convenções e aos modos de vida da elite em Atenas, mostrando-lhe a estupidez de existência. Diógenes, o filósofo-cão não tinha interesse em convencê-la pela razão, dizendo-lhe o que ela queria ouvir para obter dela a adesão; ao contrário, ele agride, atingindo-a pelo mal-estar ("páthos").  O jornal "Aurora da Rua" não agride o seu leitor, porém, ao mostrar a precariedade de se cozinhar nas ruas e, mesmo assim, o povo da rua se sente feliz, não deixa de fazer, de uma maneira sutil, uma ironia à forma atual de se alimentar das pessoas, usando o "fast-food" (comida rápida), ao sistema consumista da sociedade moderna em que não há mais tempo para a refeição em família. Na Comunidade da Trindade, ninguém come sozinho: todos, quando vão almoçar ou jantar na "Oca", uma sala arredondada onde ocorrem as refeições, se alimentam conjuntamente. Após as refeições, cada um lava seu prato e talheres, deixando-os limpos no escorredor.
        O morador de rua não tem vergonha de cozinhar, substituindo a panela por um latão (vg. figura), tendo como base dois ou três tijolos ao invés do fogão, queimando pedaços de madeiras, recolhidos do material reciclável, pois não tem dinheiro para comprar gás liquefeito. O alimento não é comprado em supermercados, mas recolhidos nas feiras populares, seja porque não têm valor comercial, porque estão machucados, seja porque estão imprestáveis porque caíram no chão. Tudo é aproveitado, usando um ingrediente especial: a cooperação. Cada um contribui do seu jeito, trazendo um tipo de alimento. É evidente que a vida assim experienciada não contém dissimulação, não se preocupa com as aparências. Pode ser sofrida, mas esta comunhão ameniza a fragilidade social em que se encontra o morador de rua. Muitos não recebem comida pronta; ao contrário, têm que cozinhar o pouco alimento debaixo dos viadutos, nas calçadas das ruas. Este comportamento é influenciado por este cinismo judaico-cristão."Portanto eu lhes digo: Não se preocupem com sua própria vida, quanto ao que comer ou beber; nem com seu próprio corpo, quanto ao que vestir. Não é a vida mais importante que a comida, e o corpo mais importante que a roupa? Observem as aves do céu: não semeiam nem colhem nem armazenam em celeiros; contudo, o Pai celestial as alimenta. Não têm vocês muito mais valor do que elas? (Mateus, 6 26-30).
        A forma de construir o texto tem vestígios cínicos. Precede sempre uma reflexão de um narrador-enunciador: " Toda culinária representa parte da cultura do seu povo. O modo de cozinhar criado pelo povo de rua revela características do seu próprio estilo de vida.". Em seguida, aparecem os relatos orais como forma de confirmação das sentenças argumentativas e explicativas: "Transformamos garrafas Pet em vasilhas,  latas em panelas, recuperamos verduras caídas das barracas de feira. Nada se perde em nossas mãos” explica Robson. Segundo relata o Diógenes Laércio na sua obra: "Vidas e doutrinas de filósofos ilustres" (1977), o Diógenes, o filósofo cão, quando expunha suas reflexões filosóficas, contextualizava-as com relatos ou aforismos. Falando uma vez sobre a importância da natureza como fonte de inspiração de conduta moral, ele relatou uma história: "Estava diante de uma fonte, buscou uma caneca na sua mochila para beber água. De repente, uma criança apareceu e, com duas mãos, fez uma concha e bebeu a água. Imediatamente, ele jogou a caneca fora e fez a mesma concha e também bebeu a água".
          Além da criatividade, a comida de rua tem um sabor diferente, não só porque é simples e gostosa, mas também porque é feita com solidariedade, criatividade e engenho numa época em que predomina o individualismo, a competição e a destruição do outro. O tempero não é feito somente com cebolas, alhos e coentro, mas, sobretudo, com o espírito de comunhão, de repartição, o que não se verifica nos esquemas hegemônicos da sociedade. Na Comunidade da Trindade, o cozinhar é sempre em forma de rodízio, outro limpa as verduras, corta os legumes. Só não participam os velhos ou os doentes. Todos, de alguma forma, participam de todas as atividades. Não há desperdício, come-se o suficiente para sobreviver. Quando há sobras, a comida é dividida entre todos os animais que vivem na comunidade.

















quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

DISCURSO E PRÁTICA SOCIAL NA CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS NO JORNAL ' AURORA DA RUA' (1)

     Para se compreender o jornal "Aurora da Rua", há a necessidade de se conhecer a Comunidade da Trindade, pois o jornal reflete a prática discursiva desta forma específica de viver. Os sujeitos que nela vivem não têm consciência, por efeitos do esquecimento ideológico, das implicações que legitimam aquilo que é dito nas páginas do jornal. A singularidade do jornal não está só no formato de tabloide, no estilo de escrever as matérias, mas, sobretudo, nas concepções do homem em situação de rua, de sua fragilidade social e nas vivências psicopedagógicas do dia a dia.
       A leitura exclusiva dos jornais não foi suficiente para detectar a verdadeira identidade do "Aurora da Rua"; foi preciso adotar a observação participante durante quatro anos para perceber que algumas hipóteses não se comprovavam. Muitos visitantes consideram esta experiência muito estranha, porque os moradores de rua não pedem esmolas, não recebem ajuda oficial, não tem registro de pessoa jurídica, não é um movimento social. Não é filantropia assistencialista, porque não cria passividade naquele que é acolhido pela comunidade. Só permanece quando o morador que ser ajudado, por isso assume um compromisso: participar das atividades, construir-se como pessoa, respeitar os outros. A comunidade, quando acolhe, não o faz por piedade ("coitadinho"), por higienismo como forma de limpar a cidade, mas com respeito, acreditando na reconstrução de laços afetivos e sociais perdidos.
        Diferentes fios discursivos formam uma tessitura capaz de explicitar esta simbiose entre o discurso do jornal e a prática discursiva da Comunidade da Trindade a partir da memória e do interdiscurso como uma constante reverberação no intradiscurso. Por influências de ordens religiosas (franciscanos, dominicanos, beneditinos, etc.), a Comunidade da Trindade vive um despojamento material, um espírito de solidariedade como viviam os peregrinos das primeiras comunidades cristãs da civilização ocidental. Neste período, predominavam,  na figura do Jesus histórico, o cinismo, o estoicismo e o judaísmo. Segundo Mack (1994, p. 15), no seu livro: "O Evangelho perdido: o livro de Q e as origens cristãs", Jesus era um judeu cínico, por isso ele fez opção pelos pobres, vivia como um peregrino, nasceu numa gruta em Belém, não aceitava a hierarquia religiosa judaica. Predominavam, na região da Galileia, a cultura helenística (grega), sobretudo nas cidades de Séforis e Teberíades, perto de Nazaré onde viveu Jesus, a cultura judaica, em particular os essênios que viviam no deserto, os zelotes que eram nacionalistas e não aceitavam a presença dos romanos.

         1. CINISMOS ("KYNISMO")
          
           Foi uma escola filosófica grega criada por Antístenes, seguidor de Sócrates, aproximadamente no ano 400 a.C., mas seu nome de maior destaque foi Diógenes de Sínope. Estes filósofos menosprezavam os pactos sociais, defendiam o desprendimento dos bens materiais. Um cínico não tinha nenhuma propriedade e rejeitava todos os valores convencionais de dinheiro, fama, poder ou reputação. Uma vida vivida de acordo com a natureza requer apenas as necessidades básicas necessárias para a existência, e qualquer um pode tornar-se livre ao libertar-se de todas as necessidades que são o resultado da convenção.  O símbolo do cinismo era o "cão" ("kion" em grego, daí o nome "kynismo"), por isso Diógenes era conhecido como "filósofo cão".

Diógenes com sua lâmpada, dentro de um barril de vinho
         ARGUMENTAÇÃO CÍNICA

  • Farresia - dizer a verdade mesmo que isto custasse a própria vida como fez o Sócrates. A morte não é um demérito quando se diz o que pensa, pois é sinal de virtude e de coragem.
  • Vida não dissimulada - vida da qual não se envergonha porque não tem de se envergonhar” “Não há intimidade, não há segredo, não há publicidade na vida do cínico”
  • Vida sem mistura - A verdadeira vida é sem vínculo, sem dependência, o que significa pobreza”. A pobreza cínica é um despojamento que se priva de elementos materiais. “Ela não é a aceitação da pobreza, ela é um conduta efetiva de pobreza”
  • Vida reta - “ Só o que é da ordem da natureza é que pode ser um princípio para definir a vida reta para os cínicos.”
  •  Vida soberanaÉ o mesmo ato fundador  de tomada de si que vai dar o gozo de mim mesmo e, por outro lado, permitir ser útil aos outros quando eles estão em dificuldades ou na desgraça”(FOUCAULT,2011,p.221-236)              

               Estes princípios se encarnam na Comunidade da Trindade, pois os moradores de rua que nela vivem gozam de uma liberdade de total despojamento material, não se preocupam com as convenções sociais como o consumismo. A virtude está na capacidade de o homem saber enfrentar as adversidades sem hipocrisia ou dissimulação, sempre falando a verdade (farresia), vivenciar a total independência sem que isto signifique marginalidade social. Eles não formam uma comunidade jurídica, obrigada a recolher impostos. Diógenes, saía pelas ruas de Atenas, em plena luz do dia, com uma lanterna em busca de um homem virtuoso, honesto, o que era sempre uma coisa infrutífera. A estampa acima se encontra na tirinha de cada edição do jornal  e na jaqueta dos vendedores. De forma estilizada, a Aurora é esta menina à esquerda com roupa simples representando o povo da rua; o Juca é o rapaz barbudo, cabeludo que representaria o Diógenes moderno, não trazendo a sua lanterna, mas o jornal "Aurora da Rua" como uma fonte de luz (aurora) para todos; o Pituco é o cachorro que faz companhia aos dois, o qual representa a natureza, a liberdade.

                                                         
      
                                  LEGADO CÍNICO

  Os filósofos cínicos andavam tanto na periferia das cidades como nas zonas rurais, descalços, com bastão como se fosse uma arma, usavam um manto com duas dobras, uma bolsa típica de mantimentos, barba e cabelos longos  e desarrumados. Segundo Branham (2007), a produção literária dos cínicos significou a renovação de formas de discursos orais, transformando os gêneros tradicionais como a epístola, os tratado numa forma burlesca, abusando das paródias, da escrita aforística. Além disto, "desfigurar a moeda corrente" numa referência à vida de Diógenes é outra marca dos cínicos. "O moto cínico faz do chiste, da paródia e da sátira não apenas ferramentas retóricas úteis, mas indispensáveis constitutivas da ideologia cínica como tal" (BRANHAM, 2007, p. 107). Isto influenciou, no Renascimento, a criação de obras como "Gargantuá e Pantagruel" de François Rabelais ou a obra: "O sobrinho de Rameau" de Diderot no séc. XVIII.
   O cinismo, no sentido grego, influenciou muitas manifestações culturais no mundo ocidental:

a)Posteridades religiosas: ASCETISMO CRISTÃO
          
  A opção pelos pobres, a preocupação moral de comportamento, o despojamento material marcaram os primeiros cristãos. Nesta época, não havia ainda a marca do "reino de Deus" ou a visão escatológica do fim do mundo. Cristo peregrino andava pela zona rural da Galileia com túnica, descalço, sem qualquer cajado, sem dinheiro ou mochila para carregar mantimentos. Influenciou as ordens religiosas mendicantes ou não como os franciscanos, os beneditinos, etc. Os dominicanos ("canes domini") eram conhecidos pela expressão: "cães do senhor".
       Os estoicos ("estoicismo") foram os herdeiros do cinismo e, usando a razão, retiraram os excessos irracionais deste pensamento filosófico: a autofagia, o incesto, atos agressivos como urinar nas ruas, defecar, etc. Epíteto foi um dos mais contribuiu para a popularização do cinismo no império romano. O cristianismo primitivo absorveu tudo isto, porque os cristãos se lembravam de Jesus, usando parábolas, aforismos, relatos orais, metáforas ligadas à natureza, com a intenção de construção de "nova vida" como faziam os cínicos. Os pagãos pensavam num cuidar de si e alcançar a felicidade; os cristãos acreditavam  numa outra ética de viver em oposição à visão farisaica de muitos judeus. "Ide;eis que vos envio como cordeiros entre lobos. Não leveis bolsa, nem mochila, nem calçado e a ninguém saudeis pelo caminho...Permanecei na mesma casa, comei e bebei do que eles tiverem...Não andeis de casa em casa." (Lucas, 10, 3-7). 
        Neste fio discursivo, é impossível não imaginar como o interdiscurso funciona como uma força motriz, pois, ao se analisar o que é dito nas reuniões de pauta, nas oficinas de textos ou mesmo na leitura do jornal "Aurora da Rua", percebe-se que, no discurso lido existem ressonâncias ou reverberações de outros discursos do passado. Sente-se a presença da "Teologia da Libertação", lançada na América Latina por Gustavo Gutiérrez, como uma resposta aos anseios de libertação das classes oprimidas, das comunidades eclesiais de base de onde nasceram muitos movimentos sociais na defesa de direitos fundamentais, a exemplo, de moradia, de material reciclável, etc. Atualmente, a figura do Papa Francisco vem resgatando este antigo despojamento material, esta opção pelos pobres, criticando a ostentação de bispos, a suntuosidade das igrejas. Recentemente, mandou construir banheiros, na Praça São Pedro, no Vaticano, para os moradores de rua.

b) Posteridades políticas: a revolução como estilo de existência

          O cinismo ajudou a desenvolver o "militantismo", durante os séculos XIX e XX, na medida em que estimulou a ruptura das convenções, dos hábitos e dos valores da sociedade burguesa, sobretudo, após a Revolução Industrial. Com a descoberta da exploração do homem pelo próprio homem, surge a necessidade de criação de uma socialidade secreta, de uma organização instituída (partidos políticos, sindicatos de trabalhadores) como forma de defender "estilos de existência" diferentes. 
           Outro elemento significativo é o testemunho de vida como uma forma de contestação que se materializa na obra literária como o realismo materialista de Dostoievski, a denúncia do genocídio de Canudos por Euclides da Cunha em "Os Sertões" ou mesmo a denúncia do brasileiro abandonado pela República Velha nas obras de Monteiro Lobato, sem falar da denúncia do preconceito de cor e da vida pobre suburbana na cidade do Rio de Janeiro por Lima Barreto.

c) Posteridades estéticas: a arte moderna

          A contestação cínica das convenções sociais influenciou também a irrupção da arte moderna no sentido de priorizar a ordem do desnudamento, do desmascaramento, da decapagem, da escavação da redução violenta ao elementar da existência. Compreende desde a rebeldia de Baudelaire, o realismo social de Flaubert, a carnalização de Bakhtin até os movimentos de contracultura na década de 60, o Pau-Brasil e Antropofagia de Osvald de Andrade de 1924/1928, o Tropicalismo de Caetano Veloso, a Literatura Divergente de Nelson Maca.

Conclusões

         Os textos do jornal "Aurora da Rua" no formato de oito secções lembram a forma dos textos cínicos, pois resultam de relatos pessoais, histórias de vida, depoimentos de moradores de rua que se transformam em diferentes tipos textuais (argumentativos, descritivos, injuntivos, narrativos, expositivos) e gêneros discursivos (editorial, texto de opinião, crônica, tirinha). O conteúdo não contém sátiras, diatribes, polêmicas, mas não deixa de ser uma grande ironia ao provar que um jornal alternativo pode sobreviver sem as amarras do capitalismo neoliberal que atrela tudo ao lucro, ao marketing e à publicidade sem limites; prova também que uma comunidade de pessoas pode ser feliz sem a magia do consumismo ou da competição inconsequente.
         A identidade do jornal "Aurora da Rua" não decorre de um movimento social, de uma parceria com a política pública de assistência aos moradores de rua, de uma filantropia institucional religiosa ou não, de uma conscientização político-partidária, de uma filosofia de autoajuda, mas da opção pelos pobres que se encontra nas origens do cristianismo, do cinismo grego em que  a pobreza  não é uma fatalidade, nem é castigo dos deuses. Não os culpabiliza, tampouco aceita o discurso da vitimização, do assistencialismo, do higienismo. Não incute revolta, nem aceita o sofrimento como expiação; ao contrário, transforma-o num aspecto positivo, porque é a possibilidade de construir uma nova vida, refazendo laços afetivos e sociais e, assim, encontrar a felicidade como já o fizeram Cristo ou Diógenes. "Bem-aventurados os que têm um coração de pobre, porque deles é o reino dos céus! Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados" (Mateus, 5, 3-4).
 A propósito, neste mês de janeiro (18 a 25), vai acontecer uma peregrinação no Recôncavo baiano, lembrando o peregrino Francisco da Soledad, que desceu o rio Paraguaçu até Bom Jesus da Lapa no século XVIII. Saindo de Salvador no saveiro "Sombra da Lua", ela começará em São Francisco do Paraguaçu, passa por Santiago do Iguape,  Cachoeira, Maragogipe até Cruz das Alma
Vejamos o que está escrito no folheto de divulgação, pois há muita semelhança com as antigas peregrinações: "A cada dia, peregrinaremos a pé de uma comunidade para a outra.
Viveremos estas caminhadas na mística dos peregrinos: elas serão para nós, peregrinos e peregrinas, o chão da experiência de Deus. Faremos do nosso peregrinar uma oração, e da nossa oração um peregrinar interior. É no caminho, nas voltas do caminho, nos “inesperados de Deus” do caminho que Deus se revelará, nos falará.
A peregrinação é vivida sem nenhum sustento próprio, fiel à mística dos peregrinos. Peregrinaremos portanto “sem levar dinheiro no bolso nem na cintura”, conforme o evangelho. Experimentar durante uma semana este despojamento radical pode tornar-se uma profunda experiência de Deus. É se propor a “ter como única confiança, única esperança, única segurança Deus e só Deus”, como o escreveu Inácio de Loyola, peregrino"

Referências

FOUCAULT, Michel. A coragem da verdade: o governo de si e dos outros II- curso no Collège de France (1983-1984). São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.
BRANHAMR. Bracht. Desfigurar a moeda. A Retórica de Diógenes e a invenção do conismo. In  CAZÉ, M.O. Goulet e BRANHAM, R. Bract. Os Cínicos. São Paulo, SP: Edições Loyola, 2007.
CAZÉ, M. Odile Goulet e BRANHAN, B (Orgs.)  Os cínicos. São Paulo: edições Loyola, 2007.
MACK, Burton L. O Evangelho Perdido: o livro de Q e as origens cristãs. Rio de Janeiro: Imago, 1994.
ONFRAY, Michel. Cynismes: portrait du philosophe em chien. Paris: Éditions Grasset & Fasquelle, 1990.
SLOTERDIJK, Peter. Crítica da razão cínica. São Paulo: Estação Liberdade, 2012.
SAFATLE, Vladimir. Cinismo e  falência da crítica. São Paulo: Boitempo, 2008