Os pobres moravam em casas de sapé cobertas com palha
1. REPRESENTAÇÃO DA SOCIEDADE SOBRE OS MORADORES DE RUA ATRAVÉS DOS TEMPOS
Na Idade Média, os mendigos, os pobres e os vagabundos já faziam parte e causavam piedade ou repulsa por parte da população. No Brasil-Colônia, Tomé de Sousa chegou à Bahia em 1549 para fundar a cidade com 400 vagabundos vindos de Portugal. Não trabalhavam, porque achavam que o trabalho braçal era coisa de escravos. Juntos com os mendigos, doentes formavam uma população perigosa, arruaceira. Salvador era uma cidade, além de suja e corrupta, cheia de
mendigos e vadios, era também violenta” (Risério, 2004, p.262).
“A
presença de uma multidão de pedintes pelas ruas sempre foi vista como ameaça à
ordem social. O século XIX produziu diversos momentos em que os mendigos foram
vistos como verdadeiros vilões. Nestes instantes, a piedade cedia lugar à
repulsa e à intolerância” (FRAGA FILHO, 1996, p. 41). Esta representação se reproduz na sociedade contemporânea que detesta e até mata os moradores de rua. Esta repulsa já advém da memória discursiva coletiva e se manifesta num silêncio reprovador desde o período do séc. XIX. "Já não se podia mais admitir que homens , mulheres e crianças vagassem pelas ruas da cidade, ocupassem vias públicas com suas roupas esfarrapadas, seus corpos sujos, feridas abertas e sua linguagem recheada de "palavras indecentes". Eles deveriam ser confinados em instituições criadas para este fim" (FRAGA FILHO, 1996, p. 59). Daí surgiram os albergues, as internações compulsórias, os asilos, etc.
2. REPRESENTAÇÃO DOS MORADORES DE RUA SOBRE SI MESMOS
As experiências negativas gravadas na memória como a história de vida, os preconceitos, o abandono social, a desestruturação da família, o desemprego, o alcoolismo reverberam nas construções discursivas dos moradores de rua quando falam de si mesmos. Nem tudo eles podem dizer ou revelar por vergonha ou medo, por isso há um silenciamento instintivo que o obriga a escolher lembranças seletivas por um sentimento de autoproteção. Vejamos alguns depoimentos:
O silêncio significa mais do que palavras
Minha entrada no mundo das ruas foi através do álcool. Quando era criança, aos sete anos de idade, minha mãe passava o dedo no copo de cachaça e passava na minha boca, aí aos nove anos eu já estava numa situação de alcoólatra, então resolvi vir para Salvador, meus familiares me descobriram que estava em Salvador, mandaram me buscar e levaram de volta. Mesmo assim, sofri muito e minha mãe me abandonou. Foi aí onde fui morar nas ruas e viver em liberdade.Apareceu, então, um
corte de cana, pois eu estava em São Paulo. Subi num ônibus e fui trabalhar no
corte de cana. Pensando que eram mil maravilhas, mas o que aconteceu pra mim
foi a pior misera na minha vida. Não tinha dinheiro pra voltar pra casa, o
jeito foi morar nas ruas em São Paulo. Eh... eh.. levei 16 anos nessa vida, né..., dormindo debaixo de marquises, debaixo de viadutos, nos bancos da praça. Onde dava pra dormir, eu dormia, botava meu colchão, meu papelão, meu lençol e ali ia dormir.
Aqui em
Salvador, eu dormi aqui...aqui...no comércio, mas em São Paulo eu dormi na
Praça da Sé, no Minhocão, não faltava lugar em São Paulo. Acordava com jato
d’água, pontapé por parte dos guardas municipais, mas....mas...o duro era
quando você via um tiroteio de polícia com bandidos, você tinha que buscar um
lugar pra se esconder...Muitos amigos meus já faleceram por causa disto
e....Hoje dou graças a Deus por não estar mais nessa vida, por ter saído dessa
vida...sofrida....e...peço a Deus que ilumine o caminho destes moradores de rua, que possam também
sair desta vida...não foi uma vida fácil, foi uma vida dura (Entrevista com Sidney).
O rosto da dor, da solidão, do abandono
A... a princípio, a primeira vez que fui para
situação de rua foi por conta do que...chamam de... “rompimento do.. dos laços familiares” como alguns falam,
existem alguns termos técnicos pra definir isto, mas... enfim... que... que me
levou a ter que morar com tios e, enfim, com outros familiares que não os meus
pais e, posteriormente, a ter que cair no mundo como... boia fria com minha
irmã e, na época, o atual marido dela. E depois, quando a gente foi pra São
Paulo, ficar (mos) literalmente em situação de rua porque a gente morava
debaixo do viaduto na cidade de São José dos Campos (SP), certo? Eh...estando
em situação de rua, a manutenção da situação, ela foi feita basicamente através
do contato com as drogas, né? Logo que cheguei a São José dos Campos, morando
debaixo de viadutos, tive.... o meu primeiro contato com as drogas... é... com
12 anos de idade e, a partir daí....ela....ela. enfim...esse mundo se abriu e
foi sendo, foi se tornando o meu mundo (Entrevista com Wesley).
3 REPRESENTAÇÃO DO JORNAL "AURORA DA RUA" SOBRE O HOMEM EM SITUAÇÃO DE RUA
Se fosse hoje, Jesus nasceria desta barriga
Lendo as páginas do jornal "Aurora da Rua", a formação imaginária sobre o homem de rua é oposta à que a sociedade tem sobre ele. Não o denomina de marginal, vagabundo, mas mantém uma atitude de respeito devido ao sofrimento, à fragilidade social. Não o considera um "coitadinho", que desperta o sentimento de compaixão como exercício de uma piedade cristã, nem o acolhe por uma visão assistencialista, filantrópica, exigindo dele obediência e passividade. O jornal não é uma instituição de caridade, apenas um veículo de informação popular e alternativo no intuito de expor o pensamento, as contradições de quem mora nas ruas e de ser uma fonte de geração de renda para aqueles que querem uma nova forma de viver. Não tem a pretensão de ser "a voz do povo da rua" como se fosse uma força externa superior, capaz de resgatá-lo da miséria, como pensa certa camada acadêmica, mas mostrar à sociedade que o morador de rua pode ser o senhor de sua história, sem as bengalas do Estado ou da Igreja, pois o jornal é feito por ele. A propósito, leiamos um fragmento da edição acima que aborda a questão da gravidez na rua:
" A gravidez é, segundo a maioria, o momento mais delicado quando o lar é a rua. Mulheres que viveram esse momento tão delicado, contam como elas conciliaram o estado de vulnerabilidade e o momento sublime, e ao mesmo tempo angustiante, da gestação"
(Aurora da Rua, dez/2014 e jan/2015, Ano 8, nº 47, p. 4)
Em seguida, seguem relatos de mulheres que, apesar das drogas, da violência, do abandono, dos abusos sexuais, da falta de assistência, souberam proteger seus filhos, apelaram para os Conselhos Tutelares, instituições específicas ou a própria família e se comportaram como guerreiras que acreditam ainda no amor e na capacidade de superação que não encontra em muitas mulheres de classe média com maior poder aquisitivo.
Diante deste discurso, é possível encontrar algum tipo de controle? Por efeito ideológico, nem tudo se pode dizer ou fazer a partir da posição discursiva selecionada pelo enunciador, o que nem sempre significa censura. O silêncio é constitutivo da linguagem, mas o silenciamento é próprio do discurso, porque, ao escolher dizer de uma forma, estou excluindo outras possibilidades. Nesta edição, o leitor não encontra nenhum relato negativo, de gravidez frustrada ou subtração dos filhos, nem faz proselitismo político, denunciando a omissão de órgãos públicos.
É um jornal com uma proposta inteligente e humana, pois discute uma questão social da gravidez nas ruas sem sensacionalismo, mostrando a todos que existe uma forma de ser feliz tendo quase nada, ao contrário daqueles que têm tudo, mas preferem a banalidade, o consumismo, a arrogância à decência, à simplicidade da vida como faziam os "cínicos" diante da estupidez de vida da elite na antiga Atenas.
Há um mês, comemoramos o Natal que relembra o nascimento de Jesus numa gruta em Belém como um fato histórico. Se o menino Jesus tivesse que nascer hoje, ele preferiria nascer numa barriga de uma moradora de rua, tão pobre quanto ele, como acontece todo dia debaixo dos viadutos, nos mocós da vida, sem direito a reis magos, a estrela do oriente, mas com direito à perseguição dos Herodes modernos: os preconceitos, a indiferença social, os conselhos tutelares, o juizado de menores, porque querem retirar filhos deles para a adoção em nome do Estado ao invés de dar-lhes uma vida digna.
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