No intuito de identificar os traços distintos do jornal "Aurora da Rua", foi importante elaborar um estudo comparativo com outro jornal de rua, publicado em Porto Alegre, chamado de "Boca de Rua", fundado no ano de 2000 pela ALICE (Agência livre para informação, cidadania e educação), uma organização não-governamental sem fim lucrativo que tem como objetivos desenvolver projetos alternativos e autogeridos de comunicação para discutir comportamento, ética e tendências da imprensa, formar leitores críticos e contribuir para democratizar e qualificar a informação no Brasil.
VOZES DE UMA GENTE INVISÍVEL
O
povo da rua passa fome, não tem onde morar,
dorme na beira das calçadas, debaixo da ponte, dentro dos esgotos, em
cima dos banheiros públicos, nos carrinhos de papelão ou em casarões abandonados.
Mas o povo da rua fala. O povo da rua tem boca.
Tem famílias inteiras morando
na rua, mas tem gente também que veio para a rua porque fugiu da família. Não
queriam ficar com a família porque eram esculachados, apanhavam. Os mais fracos
morrem. Os outros passam tudo que é tipo de dificuldade. No inverno, por
exemplo, morre muita gente porque não tem cobertas, a roupa é pouca e o
atendimento médico não existe. O que
mais dá é Aids, tuberculose,
dor de dente e bala de revólver.
A fome é o pior. Aí o primeiro recurso é roubar, mas também pedem nas casas, pedem emprego. Tem gente que xinga, mas tem os que ajudam. Dão comida, dão roupa. Tem uns que até ensinam a ler. Também tem a violência da polícia e até da população. Mesmo entre o povo das ruas existe violência.
Hoje em dia as pessoas têm medo de dormir dentro de caixas de papelão no inverno porque acontece bastante de tocarem fogo nas caixas. As vezes, são os boyzinhos, mas, outras vezes, é a gurizada da rua mesmo, que está de marcação ou uma criança pequena que cheirou loló e "viajou" Para eles, tudo é festa. Quem mais sofre são as pessoas velhinhas. Mas também na rua se aprende a respeitar as coisas dos outros, a mulher dos outros.
Tem muita droga flama. Tem droga dia e noite. E um passatempo para fugir dos problemas e da fome Tem de tudo: loló, maconha, cocaína. Cada vez mais a cocaína. Injetam, cheiram, fumam pedra de crack. Para conseguir dinheiro para droga assaltam, fazem arrombamento. Alguns são usados como "aviãozinho" pelos traficantes. Ninguém sabe ao certo quantas pessoas vivem na rua. Tem gente que se esconde em uns buracos que ninguém sabe que existe.
Mas
o povo da rua não é invisível. Quem faz o povo da rua invisível é a sociedade
que passa e nem olha. Enquanto o cara não trabalha, é como se não existisse.
Está marginalizado. Mas é difícil conseguir trabalho porque a maioria tem só a
quarta série. Muitos são analfabetos e não têm documento.
Por tudo isso, este jornal vem para transmitir o que se passa com o pessoal que convive nas ruas. Nós, da equipe do jornal, fazemos questão de usar esta palavra "convive" e não "vive" nas ruas. Para nós, não existe guri de rua. Porque da rua todo mundo é. Todo mundo sai para a rua para trabalhar, para passear.
Acreditamos que o Boca de Rua vai ser importante para os que convivem nas ruas, porque será a sua voz. Também para a sociedade vai ser importante, porque vai botar na cabeça das pessoas o pensamento do pessoal que convive nas ruas. O jornal vai mostrar que nunca ninguém está completamente certo. Tem pessoa que se acha "o cara", mas não é. Ninguém é. Se viesse para a rua não seria ninguém.
Como disse o Jim Morrison (líder do grupo de rock The Doors): "Mesmo o relógio parado está certo duas vezes por dia" (BOCA DE RUA,
Ano I, número 0, dezembro 2000).
VOZES DA RUA: ANÁLISE DO TEXTO
Este texto abre o primeiro número do jornal "Boca de Rua (2000) cuja título contém uma sugestão cínica: "Vozes de uma gente invisível". A descrição do povo de rua que não tem onde morar, dorme na beira das calçadas ou debaixo dos viadutos se parece com os cínicos que viviam nas ruas de Atenas, pedindo esmolas, mas que não aceitavam as convenções sociais que os qualificavam de imundos, ignorantes. Só que eles pensavam, filosofavam e rosnavam como cães à semelhança de Diógenes ("Mas o povo da rua fala. O povo da rua tem boca"), para mostrar aos atenienses a estupidez de suas vidas.
No segundo parágrafo, usando o estilo indireto livre, coexistem duas vozes: a do próprio morador de rua gaúcho e a do narrador- enunciador que descrevem a sua triste realidade sem qualquer forma de dissimulação ("veio pra rua porque fugiu da família... Os mais fracos morrem... O que mais dá é Aids, tuberculose, dor de dente e balas de revólver"). É visível a preocupação com a verdade (parresia), o que lhe dá ânimo para enfrentar as adversidades.
No terceiro parágrafo, verifica-se a liberdade no registro popular da linguagem quando usam o verbo "ter" no lugar de "existir" ( "Tem gente que xinga...Tem uns que até ensinam a ler") como o tom crítico e irônica quando fala de violência da polícia, do próprio povo de rua. Há uma preocupação de denunciar o abandono social, o que não se faz no jornal "Aurora da Rua".
No quarto parágrafo, o morador de rua explicita duas formações discursivas antagônicas através da sua formação imaginária. Quando diz que ninguém mais quer dormir em caixa de papelão, porque podem tocar fogo nela, é uma alusão ao higienismo social: matar as pessoas de rua como forma de resolver o problema da exclusão. Simultaneamente, é condescendente com as crianças que cheiram "loló", com a fragilidade dos velhinhos como revela um lado positivo: aprende-se a respeitar as coisas dos outros, a mulher dos outros. Tudo isto está sendo revelado e analisado devido à existência do jornal "Boca de Rua", que lhes dá visibilidade.
As condições de produção do jornal "Boca de Rua" se diferem daquelas do jornal "Aurora da Rua", porque os moradores de rua não dispõem de um lugar fixo para as reuniões. Não existe uma comunidade como suporte. Nas reuniões, os mediadores discutem com eles a realidade cotidiana como está descrita: "Tem muita droga flama. Tem droga dia e noite. E um passatempo para fugir dos problemas e da fome Tem de tudo: loló, maconha, cocaína" (5º §). É um relacionamento difícil que exige muito controle e paciência.
A consciência crítica aflora (" o povo da rua não é invisível") a partir dos textos e das leituras, dos relatos compartilhados, por isso o jornal "Boca de Rua" passa a dar oportunidade de os moradores de rua expressarem seus pensamentos e sofrimentos. Na produção textual, pela opção pelo estilo indireto livre, a realidade é vista pelo olhar do morador de rua, por isso os nomes dos colaboradores são mencionados no final de cada matéria. Os dois se assemelham muito, mas são diferentes na forma de encarar o mundo da exclusão e na forma de escrever os textos.
No jornal "Aurora da Rua", predomina o estilo indireto em que o narrador diz o que acontece com os personagens, mesclado com o estilo direto em que se reproduz a fala do morador de rua. Veja este fragmento falando sobre "Rua, minha Casa":
"Nós andamos em becos, ruazinhas, lugares esquecidos, antigos. Quem conhece mais Salvador do que os próprios moradores de suas ruas? O nome já diz morador de rua, moramos aqui, vivemos aqui, todos os dias". A reflexão de Edmarcus faz sentido. Diferente da maioria dos outros países que conceituam essa população pela falta de um teto, o Brasil a define como moradores de rua - um termo que não remete à carência e ainda revela a potencialidade daquilo que são: susjeitos que vivem e experimentam a cidade.
VOZES DA RUA: ANÁLISE DO TEXTO
Este texto abre o primeiro número do jornal "Boca de Rua (2000) cuja título contém uma sugestão cínica: "Vozes de uma gente invisível". A descrição do povo de rua que não tem onde morar, dorme na beira das calçadas ou debaixo dos viadutos se parece com os cínicos que viviam nas ruas de Atenas, pedindo esmolas, mas que não aceitavam as convenções sociais que os qualificavam de imundos, ignorantes. Só que eles pensavam, filosofavam e rosnavam como cães à semelhança de Diógenes ("Mas o povo da rua fala. O povo da rua tem boca"), para mostrar aos atenienses a estupidez de suas vidas.
No segundo parágrafo, usando o estilo indireto livre, coexistem duas vozes: a do próprio morador de rua gaúcho e a do narrador- enunciador que descrevem a sua triste realidade sem qualquer forma de dissimulação ("veio pra rua porque fugiu da família... Os mais fracos morrem... O que mais dá é Aids, tuberculose, dor de dente e balas de revólver"). É visível a preocupação com a verdade (parresia), o que lhe dá ânimo para enfrentar as adversidades.
No terceiro parágrafo, verifica-se a liberdade no registro popular da linguagem quando usam o verbo "ter" no lugar de "existir" ( "Tem gente que xinga...Tem uns que até ensinam a ler") como o tom crítico e irônica quando fala de violência da polícia, do próprio povo de rua. Há uma preocupação de denunciar o abandono social, o que não se faz no jornal "Aurora da Rua".
No quarto parágrafo, o morador de rua explicita duas formações discursivas antagônicas através da sua formação imaginária. Quando diz que ninguém mais quer dormir em caixa de papelão, porque podem tocar fogo nela, é uma alusão ao higienismo social: matar as pessoas de rua como forma de resolver o problema da exclusão. Simultaneamente, é condescendente com as crianças que cheiram "loló", com a fragilidade dos velhinhos como revela um lado positivo: aprende-se a respeitar as coisas dos outros, a mulher dos outros. Tudo isto está sendo revelado e analisado devido à existência do jornal "Boca de Rua", que lhes dá visibilidade.
As condições de produção do jornal "Boca de Rua" se diferem daquelas do jornal "Aurora da Rua", porque os moradores de rua não dispõem de um lugar fixo para as reuniões. Não existe uma comunidade como suporte. Nas reuniões, os mediadores discutem com eles a realidade cotidiana como está descrita: "Tem muita droga flama. Tem droga dia e noite. E um passatempo para fugir dos problemas e da fome Tem de tudo: loló, maconha, cocaína" (5º §). É um relacionamento difícil que exige muito controle e paciência.
A consciência crítica aflora (" o povo da rua não é invisível") a partir dos textos e das leituras, dos relatos compartilhados, por isso o jornal "Boca de Rua" passa a dar oportunidade de os moradores de rua expressarem seus pensamentos e sofrimentos. Na produção textual, pela opção pelo estilo indireto livre, a realidade é vista pelo olhar do morador de rua, por isso os nomes dos colaboradores são mencionados no final de cada matéria. Os dois se assemelham muito, mas são diferentes na forma de encarar o mundo da exclusão e na forma de escrever os textos.
No jornal "Aurora da Rua", predomina o estilo indireto em que o narrador diz o que acontece com os personagens, mesclado com o estilo direto em que se reproduz a fala do morador de rua. Veja este fragmento falando sobre "Rua, minha Casa":
"Nós andamos em becos, ruazinhas, lugares esquecidos, antigos. Quem conhece mais Salvador do que os próprios moradores de suas ruas? O nome já diz morador de rua, moramos aqui, vivemos aqui, todos os dias". A reflexão de Edmarcus faz sentido. Diferente da maioria dos outros países que conceituam essa população pela falta de um teto, o Brasil a define como moradores de rua - um termo que não remete à carência e ainda revela a potencialidade daquilo que são: susjeitos que vivem e experimentam a cidade.
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