quinta-feira, 25 de outubro de 2012



A LUTA DE SUPERAÇÃO DE UM EX-MORADOR DE RUA: DA DROGA  À VIDA DE VENDEDOR DO JORNAL " AURORA DA RUA"      

Fig.1. Retorno à família

 A manchete do jornal Aurora da Rua nº 33 foi a seguinte: SOL VOLTA A BRILHAR. Conheça histórias de pessoas, que nas noites das ruas, perderam o aconchego familiar, mas conseguiram dar a volta por cima e trilham o caminho da restauração dos laços afetivos rompidos.


  Na parte interna em que existe uma produção coletiva existem muitas histórias de superação, mas há um texto na coluna: “Brilho da Aurora”, assinada por uma ex-moradora de rua, chamada Noely Novais, residente na Comunidade da Trindade, cujo título era este: “O amor pelos meus filhos me faz viver”.  Ela conta a história de Nelson Carvalho, que aparece na foto abaixo vendendo o jornal em eventos culturais. Ele é uma pessoa que todos gostam de ter por perto, porque é solidário e proativo, não mede esforços para ajudar os outros.

Fig.2. Nelson vendendo jornal
 Nem sempre foi assim, no passado não tão distante, ele viu a sua vida desmoronar. Dependente químico por 19 anos, a droga veio como uma avalanche e devastou a sua vida: “Perdi o convívio familiar, emprego, estudo, saúde e principalmente a dignidade. Saí de casa, abandonei meus filhos e a mim mesmo”, desabafa Nelson
      Achei que poderia parar quando quisesse, mas me  enganei”, afirma. Ele passou por albergues, centros de recuperação e finalmente foi parar na rua, situação que perdurou por cinco anos. “Ficar longe dos meus filhos  foi a maior tortura. Sentia muitas saudades deles, mas não queria que eles me vissem naquela condição. Então comecei a acompanhá-los de longe. Muitas vezes ia à escola onde eles estudavam e escondido os via. Era assim que eu matava a saudade”, relata.
   Chegou um momento que ele não aguentou mais e, então, resolveu procurar ajuda de fato. Frequentou igreja evangélica, e lá chegou à conclusão que só fé em Deus e muita força de vontade o libertariam daquela condição. Um ferimento no pé, decorrente do trabalho com reciclagem, fez com que ele chegasse a uma comunidade que prestou ajuda. “Na comunidade recebi amor e apoio para curar não só aquele ferimento no pé, mas também as feridas da alma”,  recorda. Hoje ele mora nesta comunidade que acolhe outras pessoas em situação de rua e conta que, através das partilhas diárias, vem-se fortalecendo e vislumbra um novo tempo. A narradora continua a falar de Nelson:
    Se antes Nelson desejava a própria morte por consequência da dependência química, hoje ele celebra a vida    redescobrindo seu verdadeiro valor. “Estou me aproximando dos meus filhos aos poucos, com muita cautela. Às vezes passo o final de semana com eles, e nos falamos sempre por telefone”, conta. Além de reatar os laços afetivos, Nelson se orgulha de poder ajudar financeiramente a família, pois é vendedor do jornal “Aurora da Rua”, sua atual fonte de renda. Como já dizia o escritor Paulo Freire, “somos seres de sonho e de desejos. É o cultivo permanente dos sonhos que transpõe os seres humanos para lugares novos, tempos e espaços diferentes metamorfoseando vidas.”. Conclui Nelson: “Graças a Deus, hoje quando olho para mim vejo vida novamente. A vida que tinha perdido. Estou bem, caminhando resoluto. O amor pelos meus filhos me faz viver.”
          Quanto ao plano da expressão, o texto é relato jornalístico com duas vozes: a narradora e o personagem Nelson que fala de sua trajetória de vida. Linguagem coloquial, uso do discurso direto e do discurso indireto são outras características. Quanto ao plano do conteúdo, a leitura profunda (estrutura fundamental) trabalha as contradições temáticas. “Sol voltou a brilhar” acompanhada de ícones amarelos (sol, raios) em contraste com o chão com tons verdes azuis e amarelos parecendo uma tela impressionista. Nesta afirmação, há também uma negação: se o sol volta a brilhar, logo antes não brilhava, havia escuridão. Na capa do jornal, há um casal de costas acompanhado de uma menina que se imagina ser filha, com roupas alegres, de mãos dadas, numa alusão de retorno. Alguns valores surgem como dicotomias: desintegração> integração; morte > vida; sofrimento > alegria; lua (escuridão)> sol (luz). De qualquer maneira, não se sabe se o que se nega ou afirma se constitui numa verdade, mentira, falsidade ou segredo segundo o quadro semiótico (semântica fundamental). Veja o quadro


          A linha horizontal (ser – parecer) indica contrariedade, o que não significa oposição, apenas são duas realidades diferentes da essência humana: vida. A linha horizontal (não parecer–não ser) indica subcontrariedade. As linhas perpendiculares sugerem contradições porque o contrário de ser não é parecer, mas não-ser; o contrário de parecer não é ser, mas não-parecer. Na linha vertical, observam-se as afirmações porque ser é não parecer; parecer é não ser. Quando alguma coisa parece, mas não é, ela passa a se constituir numa mentira; se algo não parece e não faz questão de ser significa falsidade; se alguma coisa busca ser sem se preocupar em não parecer significa segredo; se algo busca ser, procurando parecer passa a ser a mais pura verdade.
            No texto em análise, há duas realidades que se contrapõem: vida (a luz, o sol) > morte (escuridão, a lua), mas pode acontecer um simulacro: o jornal pode produzir estes textos com esta representação positiva de realidade e não retratar a viva realidade da comunidade de que fala, portanto isto seria uma grande mentira; se o jornal produz este material em que não faz questão nem de parecer, nem de ser, então o que ocorre é uma falsidade. Se, ao contrário, o jornal produz esta representação do mundo e não faz questão de não-parecer, logo se está diante de um segredo; se os textos produzidos procuram ser e fazem questão de parecer o que são significa dizer que se fala a verdade. Para verificar o grau de veridicção destes textos (fotos, relatos), faz necessário continuar o percurso gerativo de sentido, indo para estrutura sêmio-narrativa.
            No nível narrativo, o sujeito se preocupa com um objeto-valor que pode ser um bem material como pagar uma dívida ou viajar ou imaterial: ser feliz, resgatar a autoestima, restabelecer os laços familiares. O percurso significa o sujeito sair de um ponto inicial (enunciado de estado) em que predomina a carência, a falta daquilo que o faz sofrer. A tensão do sujeito não pode ficar apenas no desejo, na paixão (querer), na consciência do ético, da obrigação (dever), por isso tem partir para a ação concreta com a intenção de atingir o objetivo (enunciado de ação), mas, para isto, necessita de saber como agir (saber) e, finalmente, alca
         No texto “O amor pelos meus filhos me faz viver”, o Nelson estava numa situação de abandono, morando nas ruas, com um ferimento no pé (disforia); de repente, resolveu mudar e buscar a cura, o acolhimento, o carinho (euforia), o que ocorreu, pois vive na Comunidade da Trindade e vende o jornal “Aurora da Rua”. O texto descreve como se deu este percurso até a comunidade, mas pode acontecer que Nelson esteja vivendo hoje outro percurso gerativo de um dia voltar a viver com a família. Para a análise, o que interessa é o que está escrito no jornal.

Fig. 2  Vendedores no Rio Vermelho
Fig.1 - Nelson mostrando o jornal "Aurora da Rua"
 Quatro são os passos para a consecução do percurso gerativo de sentido: a manipulação, a competência, a performance e a sanção. A manipulação que o sujeito desenvolve em relação ao enunciatário, no nosso caso, o leitor do jornal pode ser de quatro modalidades: sedução, tentação, provocação e intimidação. A conceituação teórica é bem diferente da noção do senso comum, porque , quando o sujeito enaltece um aspecto positivo do outro, ocorre a sedução (Ex. Você é inteligente, que sorriso! Vamos sair?); se aponta algum tipo de vantagem positiva ou negativa, o que acontecendo é a tentação (Ex. Se vier, vamos conhecer Paris); se aponta algum aspecto negativo do outro, pode ter certeza de que está acontecendo uma provocação (Ex. Você não é capaz de entregar o trabalho na data marcada e o sujeito cumpre o prometido); se você aponta o castigo como forma de exigir mudança de comportamento do interlocutor, está diante da intimidação.
            No texto fotográfico, as cores amarelas, o brilho do sol, a imagem da família unida, o chão colorido, tudo aparece como efeito de tentação, e não sedução, o que pode incutir no leitor uma atitude de cooperação, acomodação ou confronto. No texto escrito, a busca pela igreja evangélica, o acolhimento pela Comunidade da Trindade, a cura do ferimento, o carinho recebido, ajuda financeira à família são aspectos positivos (tentação) que podem convencer o morador de rua como leitor a ser o mesmo que Nelson. A intencionalidade, no sentido fenomenológico, pode ser verificada na figura 1 acima, porque Nelson, como ex-morador de rua, ao mostrar o jornal, pode estar dizendo ao outro que ele também pode sair da miséria em que se encontra, não por causa de uma determinada política pública de acolhimento, mas porque existe uma valorização de si mesmo como pessoa (sedução). A imagem dos quatro ex-moradores de rua no Rio Vermelho (figura 2) pode funcionar, por efeito metonímico, numa tentação ou sedução para quem é morador de rua. Isto significa muito para a semiótica que deixou de ser uma disciplina imanentista para se relacionar com o exterior da língua, logo uma visão pós-estruturalista.
            Quanto às competências, Nelson demonstrou vontade (querer), mas transformou o desejo em  ação (querer>fazer), mas também sabia que era uma obrigação, afinal ele é pai e marido (dever), partiu para ação (dever>fazer). Falta a competência de buscar os meios para atingir o seu objetivo (saber), mas não ficou no nível da consciência, concretizou os saberes (saber>saber fazer) e, afinal, tem a certeza de que chegou à performance, logo mereceu o prêmio (poder>poder fazer) quando diz: “Graças a Deus, hoje quando olho para mim vejo vida novamente. A vida que tinha perdido. Estou bem, caminhando resoluto. O amor pelos meus filhos me faz viver.”.
            O nível mais importante é o discursivo porque aqui o discurso produz os sentidos, afinal pode-se responder às indagações se o que está escrito no texto é verdade, mentira, segredo ou falsidade. O sujeito se encontra num situação de enunciação.  Aqui são analisados dois aspectos: os actantes pessoais ( eu e tu), espaciais e temporais (sintaxe discursiva). O “eu” enunciador ( o jornal) é diferente do “eu” empírico que é  Noely que, por efeito de debreagem está na 3ª pessoa falando de Nelson. O espaço e o tempo são elementos que ajudam a produzir sentidos, pois a Comunidade da Trindade, o jornal foram pontos chaves na superação de Nelson. E, finalmente, as figuras e temas (semântica discursiva) completam o quadro. As figuras são concretas como o Nelson, o jornal, a comunidade da Trindade. Se a compreensão ficar só neste nível, admite-se a transparência da linguagem, mesmo havendo uma isotopia, i.e. uma coerência figurativa. Como na AD, ocorre também o efeito metafórico, porque cada figura se relaciona a uma temática específica, acontecendo, portanto, a produção de sentidos do discurso.  A palavra discurso, na semiótica, tem o mesmo sentido de texto, o que não ocorre na AD, porque o texto é a materialização do discurso. A interpretação não acontece apenas pela imanência do texto, mas também pelo contexto histórico, pelo conhecimento enciclopédico, pela memória em que se encontra o interpretante, seja um leitor do jornal, seja um pesquisador.
            Na fase inicial da semiótica greimasiana, sob domínio do estruturalismo, podia-se até admitir a univocidade de sentido do signo linguístico (semiótica canônica), mas hoje isto não acontece mais, por influência das teorias enunciativas e discursivas. Neste sentido, Nelson pode representar o povo excluído, este ser invisível que perambula pela cidade; o jornal “Aurora da Rua” e a Comunidade da Trindade não representariam nenhuma instituição pública ou privada, mas um grupo religioso que acredita no lema bíblico: “Levanta-te e anda” sem qualquer caráter assistencialista, orientado por um monge peregrino, chamado irmão Henrique. 
            Para se fechar o círculo hermenêutico, volta-se para o início da análise quando se procurava examinar a veridicção do conteúdo do texto. Até que ponto, o relato sobre Nelson é uma verdade, mentira, segredo ou falsidade? Pelo que se conhece da cidade de Salvador, muitos Nelsons andam por aí em busca de uma superação, não por causa de um resgate de políticas públicas, nem a doação  de um teto, mas porque se buscou resgatar a dignidade, a confiança em si mesmo, pela aquisição de um trabalho, por isso saíram das ruas e estão trabalhando na construção do estádio da Fonte Nova, ou pelo abandono das drogas.
            Várias instituições trabalham com a população de rua ainda naquela visão paternalista e assistencialista de sopão, cesta básica, mas duas chamam atenção: o Movimento População de Rua, dirigido por Maria Lúcia Pereira que tem um caráter político, porque exige um cumprimento da legislação vigente junto ao governo municipal, estadual e federal; o jornal “Aurora da Rua” e a Comunidade da Trindade junto com o projeto “Levanta-te e anda” da Ação Social da Arquidiocese (ASA) que trabalham mais a consciência das pessoas em situação de risco, a construção da autoestima, desde que o morador queira ser ajudado. Não se ajuda quem não quer ser ajudado. Se a pessoa está com fome, alimenta-se, mas não se institucionaliza o ato de pedir esmola.  

Referências
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 9. Ed. São Paulo: Hucitec, 2002.
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria do discurso: fundamentos semióticos. 3. Ed. São Paulo: Humanitas, 2001.
ORLANDI, E. P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2003.
PÊCHEUX, M. A análise automática do discurso. In: GADET, F. & HAK , T. (Orgs.), Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1983.
PAVEAU, Marie-Anne. As grandes teorias linguísticas: da gramática comparativa à pragmática. São Carlos: Clara Luz, 2006.











terça-feira, 23 de outubro de 2012


  FERRAMENTAS DA ANÁLISE DE DISCURSO NA LEITURA DE TEXTOS
 
       Com base nos princípios bakhtianos (BAKHTIN, 2002), a Análise de Discurso de linha francesa (AD) é fundada por Michel Pêcheux (1969, 1988, 1990) no final da década de 1960 na França, quando o autor se encontrava numa crise teórica e política, porque estava desiludido com o Partido Comunista francês. A AD nasce de três influências: marxista, psicanalítica e linguística (Pêcheux, 1997).
              O sujeito não se significa a partir da estrutura da língua, das palavras, porque os sentidos são derivados de uma posição discursiva que o sujeito ocupa a cada movimento de inscrição em um lugar sócio-historicamente definido, um dizer. Assim, indivíduo e sujeito são conceitos distintos, pois o indivíduo é concebido como um ser biológico, o empírico, o quantificável, derivado da concepção cartesiana que divide corpo e espírito, enquanto sujeito é aquele que é atingido pelo inconsciente e pela ideologia, afetado pela exterioridade, por uma posição discursiva ou posição sujeito. Neste momento, ocupo a posição de aluno pesquisador, mas posso ocupar outras posições como funcionário público federal, pai, marido, professor, etc.
            Veja a noção de sujeito no jornal “Aurora da Rua”, objeto da minha pesquisa:

               As pessoas que estão na foto são sujeitos empíricos, mas podem ser sujeitos quando assumem um discurso em que se evidencia uma posição discursiva relativa à filosofia e à matriz ideológica do jornal "Aurora da Rua", por isso não se confunde a noção de indivíduo e de sujeito na Análise do Discurso. Neste sentido, ninguém é inocente porque, quando diz ou fala, quem fala é uma formação discursiva a que ele está  vinculado, mesmo sendo, contraditoriamente, livre e assujeitado. 
              Esta noção de sujeito sofreu mutação dentro da própria teoria, pois a AD pode ser dividida em três fases, cujas mudanças são significativas para entender o conceito. A primeira fase, conhecida também como AD1, foi concebida em 1969 com o livro: “Análise Automática do Discurso” de Michel Pêcheux em que esse estudo se aproxima da corrente estruturalista, propondo algoritmos para uma análise automática do discurso, inspirada no método de Harris (Discourse Analysis, 1952). Concebia-se, assim, nesta época, uma máquina estrutural- discursiva automática em que o sujeito era totalmente assujeitado por uma única ideologia. Segundo a teoria, um sindicalista do PT ou um católico estavam sempre presos à ideologia do partido ou da igreja; era impossível imaginar um militante comemorando uma vitória no hotel Fiesta ou um católico que pregasse a eutanásia ou o sexo fora do casamento.
             Na segunda fase (AD2), iniciada em 1975, com o livro: “Semântica e Discurso” de Pêcheux, a AD começa a rever a força do estruturalismo, aprimorando e inserindo novos conceitos  como a noção de formação discursiva heterogênea, aproximando-se , com isso, do Michel Foucault. Recupera também as noções de interdiscursividade e polifonia postulados por Mikhail Bakhtin. Representou, portanto, um período de amadurecimento teórico para a terceira fase, em que a teoria do discurso assumiu a sua forma atual: discurso como o encontro da estrutura e do acontecimento.
             Na terceira fase (AD3), estágio atual da AD, foi introduzida uma inovação metodológica e o tratamento do sujeito, porque a sua dispersão e errância são postas nas diferentes formações posições que o sujeito pode ocupar na formação discursiva, deslocando-se em função das relações que sustentam a estrutura e o acontecimento (PÊCHEUX, 1997).
            Segundo Orlandi (2003), a ideologia não é vista como um conjunto de representações, como visão de mundo ou como ocultação da realidade, mas como elemento constitutivo da linguagem com a história em que os sentidos são produzidos, em que o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia. “Esta é a marca da subjetivação: não há discurso sem sujeito. E não há sujeito sem ideologia.  Ideologia e inconsciente estão materialmente ligados..” (ORLANDI, 2003, p. 47). Ao dizer, o sujeito assume uma posição e dela enuncia, interpelado pela ideologia, ele se imagina ser a origem do que diz e que suas palavras só podem ser ditas de determinada forma e não de outra, configurando no que Pêcheux conceituou de esquecimento 1 e 2. O primeiro é o esquecimento ideológico, refere-se à ilusão de que o sujeito tem de ser o nascedouro do dizer, de que os sentidos brotam dele, por isso nem a linguagem, nem os sentidos, nem os sujeitos são transparentes, pois eles têm sua materialidade e se constituem em processos em que a língua, a história e a ideologia concorrem conjuntamente para a produção de sentidos. O segundo remete à ilusão de que o dizer do sujeito só pode ser dito de apenas uma forma, esquecendo-se que existem outras possibilidades de dizer um mesmo fato ou acontecimento.
            Estas representações do que seja língua, texto, discurso podem ajudar o desempenho do professor de língua, porque nenhuma afirmação num texto, numa fotografia é inocente, porque toda palavra, segundo Bakhtin (2002) é uma arena onde ocorrem o embate ideológico de várias correntes. Análise linguística é interessante porque, segundo a AD, no texto, o que existe é autor, com intencionalidade e responsabilidade daquilo que ele diz, enquanto o sujeito só produz sentidos no discurso. Assim, a leitura, em sala, ganha mais profundidade pelo fato de se trabalharem os implícitos e os subentendidos, o efeito metafórico, procurando identificar o processo discursivo em que se encontram o simbólico com a história, produzindo os efeitos de sentido(s).
            Para quem trabalha não com aquisição de língua, mas com o próprio discurso em mídias impressas ou virtuais, na área jurídica, em livro didático, em hipertexto, a AD funciona como dispositivo teórico e analítico capaz de dirimir indagações dos pesquisadores. Veja, por exemplo, o texto baixo, dito na Assembleia Legislativa da Bahia pela Maria Lúcia Pereira, fundadora do jornal “Aurora da Rua” e coordenadora do Movimento População de Rua, no dia 15 de junho numa sessão especial dedicada ao movimento:
 
Dizemos sempre que o tempo de sopa e de cobertor acabou. Não queremos mais isso (Palmas). Queremos o que nos foi negado há séculos: dignidade, habitação, lazer, cidadania, respeito. Não estamos pedindo, estamos exigindo, porque isso nos garante a Constituição. E somos brasileiros também. Não adianta falar de uma Bahia para todos se não inclui a população em situação de rua. Não adianta falar de um Brasil sem miséria, se a população em situação de rua não é o seu carro – forte, porque, senão, é um Brasil mascarado. E isso eu disse à presidenta Dilma... Uma mulher que há 10 anos estava nas ruas bebendo, drogada e não tinha absolutamente nada, a não ser, talvez, o desejo de viver. Hoje sento com os ministros para discutir a política da população de rua (Palmas)

              Quando Lúcia fala “Não estamos pedindo, estamos exigindo, porque isto nos garante a Constituição” ela se significa pelo efeito da memória discursiva, de que outro discurso se origina o seu dizer, ela apenas tem a ilusão de que o discurso é seu. O poder de suas palavras se legitima pela formação discursiva da Constituição Federal e da “Declaração Universal dos Direitos Humanos”, cap. I “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade.” Aqui se evidencia que o funcionamento discursivo do seu dizer se vincula a uma formação discursiva de caráter político e jurídico. A sua identidade é a identidade do povo em situação de rua que luta por políticas públicas de atendimento a este segmento social. Não aceita nenhum tipo de assistencialismo, nenhuma “bolsa-esmola” para os moradores de rua.
              Agora, veja como a AD pode trabalhar estas imagens abaixo descrevendo como ocorre o efeito de  sentidos. 
Fig. 2-  Rede social
Fig.3- Neimar crucificado 
O efeito polissêmico da expressão “rede social” (figura 2) remete a duas formações discursivas antagônicas, por isso provoca o riso. Ao ler o texto e as imagens, você, por ter um dispositivo ideológico subjacente, faz um gesto de interpretação de reprovação, cooperação ou acomodação. A polêmica está presente na crucificação de Neimar (figura 3), porque a Igreja reagiu contra esta capa, porque está jogo um embate ideológico. A frase: “Chamado de cai-cai, o craque brasileiro vira bode expiatório em um esporte onde todos jogam sujo.”  é bastante significativa.
               Enfim, a AD significou muito para melhor desempenho de alunos e de professores tanto na ção do qualidade da leitura, pois se superou aquela máxima: " O que o texto quer dizer?" como na eficiência na produção de textos, sobretudo, na construção do discurso. Como disciplina, está em permanente  evolução, dialogando com outras ciências da linguagem ou não em busca do aprimoramento metodológico e teórico.
 
Referências
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 9. Ed. São Paulo: Hucitec, 2002.
JAKOBSON, Roman. Linguística e Comunicação.2.ed. São Paulo: Cultrix, 1969.
ORLANDI, E. P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2003.
PÊCHEUX, M. A análise automática do discurso. In: GADET, F. & HAK , T. (Orgs.), Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1983.
PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas,SP: Editora da Unicamp, 1997.




              

          CONCEPÇÕES DE LÍNGUA E O ENSINO DO PORTUGUÊS

            A concepção de língua interfere muito na produção de leitura ou mesmo da produção de textos, prejudicando o ensino e a aprendizagem de uma língua materna ou estrangeira, sobretudo, quando se dirige a alunos de Letras que, no processo de formação, não percebem esta realidade em sala de aula porque lhes falta prática. É comum o professor distribuir o texto e perguntar aos alunos: qual a mensagem do texto? O que o autor quis dizer?
1. Representação
            Segundo Mendes (2012), neste momento se materializa o primeiro conceito de língua como representação do pensamento em que predomina o sujeito psicológico, individual, dono da verdade e de suas ações. Este sujeito faz uma representação do mundo e exige que o seu interlocutor, no processo de compreensão, entenda tudo como foi imaginado pelo locutor. O texto passa a ser visto como um produto lógico do pensamento, cabendo leitor captar esta representação mental com suas intenções de produtor, numa atitude passiva e constrangedora.
            A leitura será apenas uma atividade de captação das ideias do autor, desconhecendo as experiências, os conhecimentos prévios, a interação que possam existir no leitor. Em aula de literatura, muitos professores mandam estudar toda biografia, o pensamento do autor, como Machado de Assis, para poder compreender “Memórias póstumas de Brás Cubas”.  Na interpretação de texto em prova é um horror, porque o professor só aceita a sua interpretação, desconhecendo outras representações de mundo. Veja esta tirinha:

           A expressão “Que decadência sofreu a geometria, senhor” não pode ser interpretada de uma única forma, pois existem elementos co-textuais e contextuais que podem produzir outros sentidos na frase. Outra situação, dado o texto, sobretudo em língua estrangeira, diante de uma palavra que o aluno não sabe o significado, a orientação é esta: consulte o dicionário. Será que, mesmo tendo dicionário, o texto não pode estar com alguma particularidade cultural?
2. Código 
            Por influência da teoria da comunicação (JAKOBSON, 1969), a língua foi considerada como código, apenas como instrumento de comunicação, por isso exige do leitor a capacidade de decodificar o sistema linguístico. A leitura passa a ser uma atividade de decifração daquilo que está escrito no texto. O sujeito pouco interfere na produção de sentido, porque o significado se encontra no texto. Aqui também há um desrespeito às vivências, ao conhecimento prévio do leitor. O interlocutor tem apenas o papel de reproduzir o que está no texto. Nas próprias salas de aula do Instituto de Letras, muitos professores, quando pedem resenhas de texto,  exigem a reprodução fiel da mensagem contida no texto, como existisse uma univocidade da língua e uma única interpretação. Imagine alguém lendo esta faixa, na entrada da universidade:

                                "DEFENDA A DEMOCRACIA,
                         DIGA NÃO À TENTATIVA DE GOLPE."

             Não basta só conhecer o código, sem saber o contexto que explicita o sentido da faixa. Estas palavras, escritas no fundo verde, podem não significar nada, pois carecem deste horizonte social de que fala Bakhtin(2002). No canto direito da faixa, havia um ícone com a inscrição APUF. Esta sigla significa “Associação dos Professores das Universidades Federais”. Mesmo assim, quem não for professor da universidade ou instituto federal também não vai entender nada. O sentido não surge só da organização das palavras numa estrutura abstrata da língua, mas da relação delas com a sua exterioridade. Para quem fez greve, compreende que este sindicato fez um acordo com o governo federal sem consultar as assembleias que têm o poder de decidir. Como os seus dirigentes são pelegos, ligados ao PT (Partido dos Trabalhadores), tentaram dar o golpe, mas a classe reagiu e destituiu a diretoria através de uma Assembleia Extraordinária.
           Em resposta à provocação, surgiu outra faixa na entrada da Universidade Federal da Bahia nesta mesma época com estes dizeres:

                        A DESTITUIÇÃO É LEGAL E LEGÍTIMA
                              RESPEITO À DEMOCRACIA
              
            Quem passa pode também não compreender os signos linguísticos e semióticos dos dois enunciados escritos. No lado direito, estava o mesmo ícone do sindicato APUF. Agora, existe uma diretoria provisória que mandou o recado de que a destituição da antiga diretoria não foi golpe; ao contrário, foi exercício da democracia. A cor vermelha talvez signifique luta, guerra contra a subserviência dos bajuladores do poder. “Toda refração ideológica do ser em processo de formação, seja qual for a natureza de seu material significante, é acompanhada de uma refração ideológica verbal, como fenômeno obrigatoriamente concomitante. A palavra está presente em todos os atos de compreensão e em todos os atos de interpretação” (BAKHTIN, 2002, p.38).
3. Interação
            A concepção de língua como interação dialógica considera os sujeitos como atores construtores sociais, sujeitos ativos que, dialogicamente, se constroem e são construídos no texto. De modo, há lugar, no texto, para toda uma gama de implícitos, por isso o sentido de um texto é construído na interação texto-sujeito, logo haverá multiplicidade de interpretações. Segundo Mendes (2012), esta concepção é que deve prevalecer nas aulas de língua. O foco não é mais o autor, nem o texto, mas esta interação autor-texto-leitor.
            Veja esta tirinha com Chico Bento, que derrubou o Secretário de Educação, o Sr. Adauer,  do governo Wagner, pois estava num folheto de promoção de um evento cultural:


         O sentido não está na simples tarefa de decodificar as palavras, inclusive o palavrão,  mas na interação porque se evidenciam duas realidades diferentes: o riquinho quer mostrar poder econômico, como uma forma de humilhar o Chico Bento, que reagiu de acordo com o nível cultural de homem matuto, que possui uma identidade linguística especial. O politicamente correto, talvez, propusesse outra expressão: coloque tudo num orifício do aparelho excretor, intitulado ânus.
4. Discurso
       Mesmo em respeito à experiência da professora Edleise Mendes, eu discordei do seu ponto de vista, porque eu achava que haveria um outro conceito de língua como materialidade do discurso, o que ela negou, dizendo que tudo era interação.  Numa sala de aula, o aluno conversando com o professor ou com os colegas pode estar vivendo uma situação de interação. O professor vai à escola e encontra o cartaz: “Não haverá aula porque o TRE solicitou as salas”, pode-se dizer que isto é uma interação? É apenas uma comunicação como aquela que o sujeito recebe o boleto da Coelba para pagar a luz no fim do mês. Não existe diálogo entre os sujeitos, o que provoca normalmente desentendimentos, conflitos. Na interação, pressupõe a ação responsiva do sujeito empírico.
           No discurso, os sujeitos quando falam assume uma posição discursiva (pai, professor, funcionário público) porque estão vinculados a uma determinada matriz discursiva que lhes pede coerência e obediência. Neste sentido, eles não têm consciência disto, Pêcheux (1997) vai chamar isto de esquecimento. Esta visão da língua implica assumir posturas metodológicas importantes, porque vai pode admitir a polissemia, a paráfrase nas interpretações de textos.
                                                         





F
      Veja estes dois anúncios da Du Loren que já foram censurados:

Não basta só decodificar as palavras acima, nem        a interação para compreender os sentidos na materialidade dos textos verbal e visual. Se o poder estatal pode pacificar uma favela inteira, como a Rocinha, no Rio  de Janeiro ( Figura 1), ele é impotente diante de uma mulher negra, usando a lingerie da marca Du Loren. Este poder (“Quero ver dominar”) não decorre porque é mulher, mas porque está vestida com esta lingerie. Alguém pode considerar uma depreciação à mulher. O enunciador transfere o sentido de “dominar” que é do tráfico para a marca do produto, porque se prende a uma determinada formação discursiva que legitima este dizer. A expressão do rosto da mulher de desdém, segurando o quepe do soldado na mão esquerda remete às determinações que vêm do inconsciente, da memória, do interdiscurso.
           Na segunda imagem (Figura 2), a interação não é suficiente para entender o(s) sentido(s) da frase: “Você não sabe do que a Du Loren é capaz!” Uma mulher vestida com a lingerie Du Loren é capaz de despertar o desejo sexual de outra mulher.  A linguagem, as pessoas e os sentidos não são transparentes, mas opacos, por isso estas representações em aulas de português, espanhol, inglês têm que levar em conta não só a questão da interculturalidade, mas também a discursividade em que se encontram os sujeitos.
            Assim, é importante estudar a língua como materialidade do discurso, pois, para estimular a produção de leitura ou a produção de textos, é necessário aprender conceitos como condições de produção, posição discursiva, formação discursiva, formação imaginária que podem ajudar a compreender como os sujeitos se significam no discurso. 

Referências
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 9. Ed. São Paulo: Hucitec, 2002.
JAKOBSON, R. Linguística e Comunicação. 9.ed. São Paulo: Hucitec, 1969
MENDES, E. O conceito de língua em perspectiva histórica: reflexos no ensino e na formação de professores de português. In: LOBO, Tânia et alii. Linguística histórica, história das línguas e outras histórias. Salvador-BA: EDUFBA, 2012.
PÊCHEUX, M. A análise automática do discurso. In: GADET, F. & HAK , T. (Orgs.), Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1983.
PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas,SP: Editora da Unicamp, 1997.