Não há distanciamento entre o discurso do jornal "Aurora da Rua" e a prática discursiva da Comunidade da Trindade nas atividades de interação entre as pessoas, no cuidado com a natureza, presente nos jardins no fundo da Igreja Santíssima Trindade como no horto interno entre as casinhas onde abrigam moradores de rua casados, nos momentos de trabalho ou de lazer como as idas e vindas da Trindade do Mar, em Veraz Cruz. Vejamos o texto abaixo:
Que tal comermos fora? ( texto)
Moradores de rua exibem suas habilidades
culinárias e revelam os segredos de
cozinhar nas ruas.
A imagem de pessoas reunidas à mesa para
partilhar o alimento sempre foi símbolo de comunhão. Para grande parte das
famílias, a refeição é o lugar de encontro que nutre o corpo e aquece os laços
afetivos. Nas ruas, alimentar-se também pode receber um significado que
ultrapassa a satisfação do apetite. Muitos moradores de rua assumem a liderança
da culinária e conseguem proporcionar momentos de união através de uma comida
peculiar feita de improviso e reciclagens. São tantos caprichos que dá até para
brincar dizendo: “Que tal jantarmos fora hoje?”.
O fogão
é o fogo a lenha. A panela pode ser um latão. A água natural se consegue em
qualquer posto de gasolina. Os alimentos são arrecadados com a partilha em
grupo. Cada um fica fica responsável em conseguir um ingrediente. Eles
inovam a arte de cozinhar e mostram que para um bom prato de comida nas ruas, o
importante mesmo é a cooperação. “A minha equipe da Baixa dos Sapateiros tinha
umas 28 pessoas. Todos faziam correria. No final, dava um a panelona de comida”, lembra Jailton.
Toda culinária representa parte da
cultura do seu povo. O modo de cozinhar criado pelo povo de rua revela
características do seu próprio estilo de vida. Nem sempre há os utensílios e os
espaços necessários para se fazer boas receitas. Mas como a precariedade não é
maior do que o engenho dos moradores de rua, eles sempre reaproveitam o que
encontram para substituir aquilo que precisam. “Transformamos garrafas Pet em
vasilhas, latas em panelas, recuperamos
verduras caídas das barracas de feira. Nada se perde em nossas mãos” explica
Robson
Portanto, há muitos motivos para a
preferência dos moradores de rua continuar fazendo a comidinha feita por eles.
O preparo é simples, genuíno e digno. O fogo, além de dar um sabor especial,
aconchega e ainda aquece do frio da noite. “É melhor do que comida de
restaurante porque rende, você se serve à vontade e sai mais barato”, diz Elias
com a experiência de quem já provou muitas comidas de rua. (Aurora
da Rua, fev./mar 2009, Ano 3, nº 12, p. 4-5)
KYNISMO NO TEXTO E NA COMIDA DE RUA
A expressão "Vamos comer fora"? contém um conteúdo de ironia e de sarcasmo por seu caráter ambíguo, pois, para o morador de rua, ela significa literalmente comer nas ruas em oposição ao sentido conotativo da classe dominante que entende isto: comer em restaurantes da moda ou de famoso glamour. Esta visão antitética de pobreza absoluta diante da riqueza e do desperdício nos remete ao tom de zombaria e de escárnio dos kynistas (cínicos) às convenções e aos modos de vida da elite em Atenas, mostrando-lhe a estupidez de existência. Diógenes, o filósofo-cão não tinha interesse em convencê-la pela razão, dizendo-lhe o que ela queria ouvir para obter dela a adesão; ao contrário, ele agride, atingindo-a pelo mal-estar ("páthos"). O jornal "Aurora da Rua" não agride o seu leitor, porém, ao mostrar a precariedade de se cozinhar nas ruas e, mesmo assim, o povo da rua se sente feliz, não deixa de fazer, de uma maneira sutil, uma ironia à forma atual de se alimentar das pessoas, usando o "fast-food" (comida rápida), ao sistema consumista da sociedade moderna em que não há mais tempo para a refeição em família. Na Comunidade da Trindade, ninguém come sozinho: todos, quando vão almoçar ou jantar na "Oca", uma sala arredondada onde ocorrem as refeições, se alimentam conjuntamente. Após as refeições, cada um lava seu prato e talheres, deixando-os limpos no escorredor.
O morador de rua não tem vergonha de cozinhar, substituindo a panela por um latão (vg. figura), tendo como base dois ou três tijolos ao invés do fogão, queimando pedaços de madeiras, recolhidos do material reciclável, pois não tem dinheiro para comprar gás liquefeito. O alimento não é comprado em supermercados, mas recolhidos nas feiras populares, seja porque não têm valor comercial, porque estão machucados, seja porque estão imprestáveis porque caíram no chão. Tudo é aproveitado, usando um ingrediente especial: a cooperação. Cada um contribui do seu jeito, trazendo um tipo de alimento. É evidente que a vida assim experienciada não contém dissimulação, não se preocupa com as aparências. Pode ser sofrida, mas esta comunhão ameniza a fragilidade social em que se encontra o morador de rua. Muitos não recebem comida pronta; ao contrário, têm que cozinhar o pouco alimento debaixo dos viadutos, nas calçadas das ruas. Este comportamento é influenciado por este cinismo judaico-cristão."Portanto eu lhes digo: Não se preocupem com sua própria vida, quanto ao que comer ou beber; nem com seu próprio corpo, quanto ao que vestir. Não é a vida mais importante que a comida, e o corpo mais importante que a roupa? Observem as aves do céu: não semeiam nem colhem nem armazenam em celeiros; contudo, o Pai celestial as alimenta. Não têm vocês muito mais valor do que elas? (Mateus, 6 26-30).
A forma de construir o texto tem vestígios cínicos. Precede sempre uma reflexão de um narrador-enunciador: " Toda culinária representa parte da cultura do seu povo. O modo de cozinhar criado pelo povo de rua revela características do seu próprio estilo de vida.". Em seguida, aparecem os relatos orais como forma de confirmação das sentenças argumentativas e explicativas: "Transformamos garrafas Pet em vasilhas, latas em panelas, recuperamos verduras caídas das barracas de feira. Nada se perde em nossas mãos” explica Robson. Segundo relata o Diógenes Laércio na sua obra: "Vidas e doutrinas de filósofos ilustres" (1977), o Diógenes, o filósofo cão, quando expunha suas reflexões filosóficas, contextualizava-as com relatos ou aforismos. Falando uma vez sobre a importância da natureza como fonte de inspiração de conduta moral, ele relatou uma história: "Estava diante de uma fonte, buscou uma caneca na sua mochila para beber água. De repente, uma criança apareceu e, com duas mãos, fez uma concha e bebeu a água. Imediatamente, ele jogou a caneca fora e fez a mesma concha e também bebeu a água".
Além da criatividade, a comida de rua tem um sabor diferente, não só porque é simples e gostosa, mas também porque é feita com solidariedade, criatividade e engenho numa época em que predomina o individualismo, a competição e a destruição do outro. O tempero não é feito somente com cebolas, alhos e coentro, mas, sobretudo, com o espírito de comunhão, de repartição, o que não se verifica nos esquemas hegemônicos da sociedade. Na Comunidade da Trindade, o cozinhar é sempre em forma de rodízio, outro limpa as verduras, corta os legumes. Só não participam os velhos ou os doentes. Todos, de alguma forma, participam de todas as atividades. Não há desperdício, come-se o suficiente para sobreviver. Quando há sobras, a comida é dividida entre todos os animais que vivem na comunidade.
A expressão "Vamos comer fora"? contém um conteúdo de ironia e de sarcasmo por seu caráter ambíguo, pois, para o morador de rua, ela significa literalmente comer nas ruas em oposição ao sentido conotativo da classe dominante que entende isto: comer em restaurantes da moda ou de famoso glamour. Esta visão antitética de pobreza absoluta diante da riqueza e do desperdício nos remete ao tom de zombaria e de escárnio dos kynistas (cínicos) às convenções e aos modos de vida da elite em Atenas, mostrando-lhe a estupidez de existência. Diógenes, o filósofo-cão não tinha interesse em convencê-la pela razão, dizendo-lhe o que ela queria ouvir para obter dela a adesão; ao contrário, ele agride, atingindo-a pelo mal-estar ("páthos"). O jornal "Aurora da Rua" não agride o seu leitor, porém, ao mostrar a precariedade de se cozinhar nas ruas e, mesmo assim, o povo da rua se sente feliz, não deixa de fazer, de uma maneira sutil, uma ironia à forma atual de se alimentar das pessoas, usando o "fast-food" (comida rápida), ao sistema consumista da sociedade moderna em que não há mais tempo para a refeição em família. Na Comunidade da Trindade, ninguém come sozinho: todos, quando vão almoçar ou jantar na "Oca", uma sala arredondada onde ocorrem as refeições, se alimentam conjuntamente. Após as refeições, cada um lava seu prato e talheres, deixando-os limpos no escorredor.
O morador de rua não tem vergonha de cozinhar, substituindo a panela por um latão (vg. figura), tendo como base dois ou três tijolos ao invés do fogão, queimando pedaços de madeiras, recolhidos do material reciclável, pois não tem dinheiro para comprar gás liquefeito. O alimento não é comprado em supermercados, mas recolhidos nas feiras populares, seja porque não têm valor comercial, porque estão machucados, seja porque estão imprestáveis porque caíram no chão. Tudo é aproveitado, usando um ingrediente especial: a cooperação. Cada um contribui do seu jeito, trazendo um tipo de alimento. É evidente que a vida assim experienciada não contém dissimulação, não se preocupa com as aparências. Pode ser sofrida, mas esta comunhão ameniza a fragilidade social em que se encontra o morador de rua. Muitos não recebem comida pronta; ao contrário, têm que cozinhar o pouco alimento debaixo dos viadutos, nas calçadas das ruas. Este comportamento é influenciado por este cinismo judaico-cristão."Portanto eu lhes digo: Não se preocupem com sua própria vida, quanto ao que comer ou beber; nem com seu próprio corpo, quanto ao que vestir. Não é a vida mais importante que a comida, e o corpo mais importante que a roupa? Observem as aves do céu: não semeiam nem colhem nem armazenam em celeiros; contudo, o Pai celestial as alimenta. Não têm vocês muito mais valor do que elas? (Mateus, 6 26-30).
A forma de construir o texto tem vestígios cínicos. Precede sempre uma reflexão de um narrador-enunciador: " Toda culinária representa parte da cultura do seu povo. O modo de cozinhar criado pelo povo de rua revela características do seu próprio estilo de vida.". Em seguida, aparecem os relatos orais como forma de confirmação das sentenças argumentativas e explicativas: "Transformamos garrafas Pet em vasilhas, latas em panelas, recuperamos verduras caídas das barracas de feira. Nada se perde em nossas mãos” explica Robson. Segundo relata o Diógenes Laércio na sua obra: "Vidas e doutrinas de filósofos ilustres" (1977), o Diógenes, o filósofo cão, quando expunha suas reflexões filosóficas, contextualizava-as com relatos ou aforismos. Falando uma vez sobre a importância da natureza como fonte de inspiração de conduta moral, ele relatou uma história: "Estava diante de uma fonte, buscou uma caneca na sua mochila para beber água. De repente, uma criança apareceu e, com duas mãos, fez uma concha e bebeu a água. Imediatamente, ele jogou a caneca fora e fez a mesma concha e também bebeu a água".
Além da criatividade, a comida de rua tem um sabor diferente, não só porque é simples e gostosa, mas também porque é feita com solidariedade, criatividade e engenho numa época em que predomina o individualismo, a competição e a destruição do outro. O tempero não é feito somente com cebolas, alhos e coentro, mas, sobretudo, com o espírito de comunhão, de repartição, o que não se verifica nos esquemas hegemônicos da sociedade. Na Comunidade da Trindade, o cozinhar é sempre em forma de rodízio, outro limpa as verduras, corta os legumes. Só não participam os velhos ou os doentes. Todos, de alguma forma, participam de todas as atividades. Não há desperdício, come-se o suficiente para sobreviver. Quando há sobras, a comida é dividida entre todos os animais que vivem na comunidade.
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