quinta-feira, 9 de outubro de 2014

UM VELHO JORNAL DE RUA NO RECIFE DE 1900

Arquivo Biblioteca Nacional
  Este jornal era singular, pois não tinha preocupações políticas, comerciais. Buscava desenvolver uma leitura amena de assuntos científicos como a bioquímica, a construção de balões, ou tratar do cotidiano das ruas, evitando os elogios, agressões ou pornografias.
   "Ninguém procure, nesta folhazinha, escritos doutrinários, puxados à substância; também fiquem tranquilos, nela se encontrarão notas de altos escândalos e de pornografia, agressões e críticas descomedidas e descabeladas."
     Como semanário ilustrado, não durou muito, mas deixou uma marca de humor, buscando o riso em meio às tristezas cotidianas de uma capital nordestina.
     " Desejamos desejar oferecer aos que nos procurarem leitura amena e alegre, modestamente instrutiva em alguns casos, e gravuras novas, tão artísticas e tão limpas quanto for possível no Recife, que em matéria de artes bem devia ter avançado um pouco mais. A vida corre difícil e tristíssima; é necessário esquecer e rir um pouco. Tentamos ocupar e divertir, alguns minutos em cada semana, os nossos leitores; eles, porém, que dispensem as indecências cruas e bisbilhotices sobre o viver privado de qualquer. Ou, senão, escolham outros." 
                O nome é sugestivo, pois, se há um interesse por retratar figuras, comidas e pessoas que andam pelas ruas num sentido romântico, há também uma referências às pessoas que viviam nas ruas, objeto certamente da exclusão social. Veja a matéria intitulada de "Becos e Vielas":

"       Não são a parte menos importante da cidade, pois em quase todas as cousas o número se impõe, e têm inegável direito aos nossos cuidados uma vez por outra, senão a registro fixo, de sete em sete dias.
        Eles têm vida especial, usos e hábitos característicos, uma história e uma lenda muito suas, bisbilhotices próprias, sarilhos inconfundíveis, fisionomias, trages, móveis, refeições, refeições e diversões de marca registrada; há, porém, na república um princípio ou preceito chamado igualdade perante as leis e a quantos neles habitam, assim como não cabe lista menor de obrigações que a dos habitantes das praças espaçosas e das ruas de metros e mais metros, também não deve assistir menor soma de direitos, regalias e prerrogativas.
   Saibam disto, a Recife os quais muitas vezes bem próximo das grandes artérias do movimento, passam quase despercebidos à maioria da população, como se pertencessem a terras longínquas e pouco civilizadas.
      Revoltamo-nos contra isto e os lôbregos escaminhos da capital possuirão de hora em diante um advogado na imprensa, noticiário em regra e comentários, não sendo impossível que de vez em quando lá penetrem as máquinas fotográficas instantâneas.
       O pessoal de A RUA constituir-se-á, assim, num grupo de bandeirantes, de pioneiros dos becos e vielas do Recife." 
           
          O texto é bastante explícito quando a imprensa se coloca como defensora destes desvalidos nas ruas, nos becos e vielas de Recife. Os jornais de rua só vão surgir na Europa e Estados Unidos por volta da década de 80/90. Aqui, em Salvador, temos o "Aurora da Rua" que começou a existir a partir de 2007, falando das pessoas em situação de rua, oferecendo-lhes a venda do jornal como forma de gerar renda para o morador de rua e, assim, reconstruir a dignidade e a cidadania, por isso é importante registrar que algumas pessoas se preocuparam com o tema, no início do séc. XX, na cidade de Recife.

Arquivo Biblioteca Nacional
                                                                  MENDIGOS 

   Quantas vezes trilhamos, desgraçados,
Da vida humana os ásperos caminhos
  Vós, em busca de esmolas, fatigados,
 Eu, fatigado, em busca de carinhos!

Aos que tiverem sedas e brocados
Invejais a riqueza, o’ pobrezinhos
 E eu mais invejo ainda os namorados
    Aves que dormem no frouxil dos ninhos

  Como de porta em porta, sem abrigo,
Noite e dia seguis – aflição sigo
De coração em coração assim

E, assim, lastimo as esperanças mortas,
Pois, como pra vós fecham-se as portas,
Os corações se fecham para mim
                    (Celso Vieira.)

                                                                                                                       











































































































  

sábado, 20 de setembro de 2014

O SARGENTO GETÚLIO E A CAPELA SANTO ANTÔNIO DE VELASQUEZ

    
              Em recente visita à Biblioteca Juracy Magalhães Júnior com o Irmão Henrique da Trindade em busca de informações sobre a antiga Capela Santo Antônio de Velasquez, na praia de Jaburu, em Mar Grande, encontramos, no acervo e no arquivo digital, fotos  que contrastam com o atual abandono, pois é uma obra tombada pelo Instituto do Patrimônio   Histórico e  Artístico Nacional (IPHAN). Mesmo de difícil acesso à beira do mar, ela é ocupada por moradores de rua da Comunidade da Trindade que publica o jornal: “Aurora da Rua”,  na Av. Jequitaia, s/n, casa 6, Salvador (BA). A falta de luz ou de água encanada não impede o trabalho de reconstituição emocional, psíquica e social destas pessoas consumidas pelas drogas, pela fome e pelo abandono social. Através da solidariedade, da oração e do trabalho buscam a sua inserção no mundo da ocupação profissional e da cidadania.
A imagem do abandono do patrimônio histórico-cultural.

            Isto me fez lembrar o livro de João Ubaldo Ribeiro “O Sargento Getúlio” como leitura obrigatória dos vestibulares à Universidade Federal da Bahia nas décadas de 80/90 quando ainda ensinava Redação e Literatura no Instituto Social, Colégio Anchieta.  A figura do sargento da polícia militar de Sergipe, Getúlio Santos Bezerra, depois de matar a esposa por traição, pedir proteção a um chefe político, aceita nova missão: a de prender, no interior, um adversário político do chefe e levá-lo até Aracaju antes da sua aposentadoria. Com obstinação, cumpre a sua missão enfrentando todo tipo de dificuldades, mesmo recebendo ordens de interdição. Como o seu chefe não veio dizer-lhe de viva voz, continuou a sua missão até a morte, porque cometeu barbaridades, crimes. Por uma lógica surreal e ética, foi fiel a um compromisso assumido, o que não aconteceu com sua ex-mulher.
            Por entre várias interpretações semióticas, a figura do sargento tem uma dimensão universal que não se limita entre o atraso do sertão sergipano daquela época e a modernidade contemporânea. Ele se aproxima da figura de Prometeu, na Grécia que, mesmo sabendo que ia morrer no Cáucaso, que um abutre ia comer o seu fígado, em nenhum momento ele cedeu às pressões de Zeus que queria que se retratasse pelo fato de ter dado aos homens a inteligência e a sabedoria. Preferia a morte à indignidade. Existe, em cada ser humano, este sargento que nos impulsiona a cumprir uma missão de sermos aquilo que somos: professores, jornalistas, políticos, sindicalistas, etc. ainda que encontremos outras atividades até mais rendosas do que aquelas que satisfazem a nossa alma.
            Esta obra tem um caráter autobiográfico, pois, quando estudava Jornalismo na década de 70 na Ufba, acompanhava a vida de João Ubaldo como jornalista da Tribuna da Bahia, sem ter ainda a fama de grande escritor. Com aquele jeitão descontraído,  tiracolo no ombro, um sorriso no rosto, pronto para contar uma piada, o sargento Getúlio já dominava naquela intrigante missão: ser escritor. A sua missão não era o jornalismo diário, nem o magistério superior, pois foi professor de Curso de Administração (Ufba) que logo abandonou e foi estudar nos Estados Unidos. Foi fiel a este destino até a morte.
            Esta temperança vinha do seu avô: o coronel Ubaldo Osório que também tinha um sargento Getúlio dentro de si. Mesmo sendo coletor de impostos, sempre achava um jeito de fazer o que mais lhe aprazia: contar, por escrito, as coisas e fatos que envolvessem a Ilha de Itaparica. Lendo a sua obra: “Ilha de Itaparica: história e tradição” (1979), encontramos informações sobre a fazenda e a capela Santo Antônio de Velasquez. Dona Maria Velasquez doou as terras para a Irmandade do mesmo nome. Havia, além da capela, um cemitério, algumas casas para os romeiros. Era comum “a dormida” que consistia numa romaria de barcos e saveiros que partiam do porto da Barra para a praia do Jaburu. As pessoas passavam a noite e, no dia seguinte, era feita a festa de Assunção de Nossa Senhora (14 de agosto). Há uma curiosidade:  o Pe. Antônio Viera pregou na capela no dia 13 de junho de 1633.
             Outro sargento Getúlio frequenta atualmente a Capela Santo Antônio de Velasquez: o Irmão Henrique da Trindade.  Tem uma missão espinhosa: salvar a memória do lugar, mas, para isso, precisa salvar o meio ambiente antes que a especulação imobiliária destrua tudo. Precisamos transformar a fazenda numa reserva ambiental, protegendo o resto de mata atlântica para as futuras gerações. As dificuldades serão inúmeras, mas grupos de pesquisas, leitores da biblioteca, autoridades podem ajudar que esta missão seja cumprida. Não podemos deixar que o lucro, o progresso inconsequente destruam a natureza e a memória de Itaparica.