terça-feira, 23 de outubro de 2012


  FERRAMENTAS DA ANÁLISE DE DISCURSO NA LEITURA DE TEXTOS
 
       Com base nos princípios bakhtianos (BAKHTIN, 2002), a Análise de Discurso de linha francesa (AD) é fundada por Michel Pêcheux (1969, 1988, 1990) no final da década de 1960 na França, quando o autor se encontrava numa crise teórica e política, porque estava desiludido com o Partido Comunista francês. A AD nasce de três influências: marxista, psicanalítica e linguística (Pêcheux, 1997).
              O sujeito não se significa a partir da estrutura da língua, das palavras, porque os sentidos são derivados de uma posição discursiva que o sujeito ocupa a cada movimento de inscrição em um lugar sócio-historicamente definido, um dizer. Assim, indivíduo e sujeito são conceitos distintos, pois o indivíduo é concebido como um ser biológico, o empírico, o quantificável, derivado da concepção cartesiana que divide corpo e espírito, enquanto sujeito é aquele que é atingido pelo inconsciente e pela ideologia, afetado pela exterioridade, por uma posição discursiva ou posição sujeito. Neste momento, ocupo a posição de aluno pesquisador, mas posso ocupar outras posições como funcionário público federal, pai, marido, professor, etc.
            Veja a noção de sujeito no jornal “Aurora da Rua”, objeto da minha pesquisa:

               As pessoas que estão na foto são sujeitos empíricos, mas podem ser sujeitos quando assumem um discurso em que se evidencia uma posição discursiva relativa à filosofia e à matriz ideológica do jornal "Aurora da Rua", por isso não se confunde a noção de indivíduo e de sujeito na Análise do Discurso. Neste sentido, ninguém é inocente porque, quando diz ou fala, quem fala é uma formação discursiva a que ele está  vinculado, mesmo sendo, contraditoriamente, livre e assujeitado. 
              Esta noção de sujeito sofreu mutação dentro da própria teoria, pois a AD pode ser dividida em três fases, cujas mudanças são significativas para entender o conceito. A primeira fase, conhecida também como AD1, foi concebida em 1969 com o livro: “Análise Automática do Discurso” de Michel Pêcheux em que esse estudo se aproxima da corrente estruturalista, propondo algoritmos para uma análise automática do discurso, inspirada no método de Harris (Discourse Analysis, 1952). Concebia-se, assim, nesta época, uma máquina estrutural- discursiva automática em que o sujeito era totalmente assujeitado por uma única ideologia. Segundo a teoria, um sindicalista do PT ou um católico estavam sempre presos à ideologia do partido ou da igreja; era impossível imaginar um militante comemorando uma vitória no hotel Fiesta ou um católico que pregasse a eutanásia ou o sexo fora do casamento.
             Na segunda fase (AD2), iniciada em 1975, com o livro: “Semântica e Discurso” de Pêcheux, a AD começa a rever a força do estruturalismo, aprimorando e inserindo novos conceitos  como a noção de formação discursiva heterogênea, aproximando-se , com isso, do Michel Foucault. Recupera também as noções de interdiscursividade e polifonia postulados por Mikhail Bakhtin. Representou, portanto, um período de amadurecimento teórico para a terceira fase, em que a teoria do discurso assumiu a sua forma atual: discurso como o encontro da estrutura e do acontecimento.
             Na terceira fase (AD3), estágio atual da AD, foi introduzida uma inovação metodológica e o tratamento do sujeito, porque a sua dispersão e errância são postas nas diferentes formações posições que o sujeito pode ocupar na formação discursiva, deslocando-se em função das relações que sustentam a estrutura e o acontecimento (PÊCHEUX, 1997).
            Segundo Orlandi (2003), a ideologia não é vista como um conjunto de representações, como visão de mundo ou como ocultação da realidade, mas como elemento constitutivo da linguagem com a história em que os sentidos são produzidos, em que o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia. “Esta é a marca da subjetivação: não há discurso sem sujeito. E não há sujeito sem ideologia.  Ideologia e inconsciente estão materialmente ligados..” (ORLANDI, 2003, p. 47). Ao dizer, o sujeito assume uma posição e dela enuncia, interpelado pela ideologia, ele se imagina ser a origem do que diz e que suas palavras só podem ser ditas de determinada forma e não de outra, configurando no que Pêcheux conceituou de esquecimento 1 e 2. O primeiro é o esquecimento ideológico, refere-se à ilusão de que o sujeito tem de ser o nascedouro do dizer, de que os sentidos brotam dele, por isso nem a linguagem, nem os sentidos, nem os sujeitos são transparentes, pois eles têm sua materialidade e se constituem em processos em que a língua, a história e a ideologia concorrem conjuntamente para a produção de sentidos. O segundo remete à ilusão de que o dizer do sujeito só pode ser dito de apenas uma forma, esquecendo-se que existem outras possibilidades de dizer um mesmo fato ou acontecimento.
            Estas representações do que seja língua, texto, discurso podem ajudar o desempenho do professor de língua, porque nenhuma afirmação num texto, numa fotografia é inocente, porque toda palavra, segundo Bakhtin (2002) é uma arena onde ocorrem o embate ideológico de várias correntes. Análise linguística é interessante porque, segundo a AD, no texto, o que existe é autor, com intencionalidade e responsabilidade daquilo que ele diz, enquanto o sujeito só produz sentidos no discurso. Assim, a leitura, em sala, ganha mais profundidade pelo fato de se trabalharem os implícitos e os subentendidos, o efeito metafórico, procurando identificar o processo discursivo em que se encontram o simbólico com a história, produzindo os efeitos de sentido(s).
            Para quem trabalha não com aquisição de língua, mas com o próprio discurso em mídias impressas ou virtuais, na área jurídica, em livro didático, em hipertexto, a AD funciona como dispositivo teórico e analítico capaz de dirimir indagações dos pesquisadores. Veja, por exemplo, o texto baixo, dito na Assembleia Legislativa da Bahia pela Maria Lúcia Pereira, fundadora do jornal “Aurora da Rua” e coordenadora do Movimento População de Rua, no dia 15 de junho numa sessão especial dedicada ao movimento:
 
Dizemos sempre que o tempo de sopa e de cobertor acabou. Não queremos mais isso (Palmas). Queremos o que nos foi negado há séculos: dignidade, habitação, lazer, cidadania, respeito. Não estamos pedindo, estamos exigindo, porque isso nos garante a Constituição. E somos brasileiros também. Não adianta falar de uma Bahia para todos se não inclui a população em situação de rua. Não adianta falar de um Brasil sem miséria, se a população em situação de rua não é o seu carro – forte, porque, senão, é um Brasil mascarado. E isso eu disse à presidenta Dilma... Uma mulher que há 10 anos estava nas ruas bebendo, drogada e não tinha absolutamente nada, a não ser, talvez, o desejo de viver. Hoje sento com os ministros para discutir a política da população de rua (Palmas)

              Quando Lúcia fala “Não estamos pedindo, estamos exigindo, porque isto nos garante a Constituição” ela se significa pelo efeito da memória discursiva, de que outro discurso se origina o seu dizer, ela apenas tem a ilusão de que o discurso é seu. O poder de suas palavras se legitima pela formação discursiva da Constituição Federal e da “Declaração Universal dos Direitos Humanos”, cap. I “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade.” Aqui se evidencia que o funcionamento discursivo do seu dizer se vincula a uma formação discursiva de caráter político e jurídico. A sua identidade é a identidade do povo em situação de rua que luta por políticas públicas de atendimento a este segmento social. Não aceita nenhum tipo de assistencialismo, nenhuma “bolsa-esmola” para os moradores de rua.
              Agora, veja como a AD pode trabalhar estas imagens abaixo descrevendo como ocorre o efeito de  sentidos. 
Fig. 2-  Rede social
Fig.3- Neimar crucificado 
O efeito polissêmico da expressão “rede social” (figura 2) remete a duas formações discursivas antagônicas, por isso provoca o riso. Ao ler o texto e as imagens, você, por ter um dispositivo ideológico subjacente, faz um gesto de interpretação de reprovação, cooperação ou acomodação. A polêmica está presente na crucificação de Neimar (figura 3), porque a Igreja reagiu contra esta capa, porque está jogo um embate ideológico. A frase: “Chamado de cai-cai, o craque brasileiro vira bode expiatório em um esporte onde todos jogam sujo.”  é bastante significativa.
               Enfim, a AD significou muito para melhor desempenho de alunos e de professores tanto na ção do qualidade da leitura, pois se superou aquela máxima: " O que o texto quer dizer?" como na eficiência na produção de textos, sobretudo, na construção do discurso. Como disciplina, está em permanente  evolução, dialogando com outras ciências da linguagem ou não em busca do aprimoramento metodológico e teórico.
 
Referências
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 9. Ed. São Paulo: Hucitec, 2002.
JAKOBSON, Roman. Linguística e Comunicação.2.ed. São Paulo: Cultrix, 1969.
ORLANDI, E. P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2003.
PÊCHEUX, M. A análise automática do discurso. In: GADET, F. & HAK , T. (Orgs.), Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1983.
PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas,SP: Editora da Unicamp, 1997.




              

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