FERRAMENTAS DA ANÁLISE DE DISCURSO NA LEITURA DE TEXTOS
Com base nos princípios bakhtianos
(BAKHTIN, 2002), a Análise de Discurso de linha francesa (AD) é fundada por
Michel Pêcheux (1969, 1988, 1990) no final da década de 1960 na França, quando
o autor se encontrava numa crise teórica e política, porque estava desiludido
com o Partido Comunista francês. A AD nasce de três influências: marxista,
psicanalítica e linguística (Pêcheux, 1997).
O sujeito não se significa a partir da
estrutura da língua, das palavras, porque os sentidos são derivados de uma
posição discursiva que o sujeito ocupa a cada movimento de inscrição em um
lugar sócio-historicamente definido, um dizer. Assim, indivíduo e sujeito são
conceitos distintos, pois o indivíduo é concebido como um ser biológico, o
empírico, o quantificável, derivado da concepção cartesiana que divide corpo e
espírito, enquanto sujeito é aquele que é atingido pelo inconsciente e pela
ideologia, afetado pela exterioridade, por uma posição discursiva ou posição
sujeito. Neste momento, ocupo a posição de aluno pesquisador, mas posso ocupar
outras posições como funcionário público federal, pai, marido, professor, etc.
Veja
a noção de sujeito no jornal “Aurora da Rua”, objeto da minha pesquisa:
As pessoas que estão na foto são sujeitos empíricos, mas podem ser sujeitos quando assumem um discurso em que se evidencia uma posição discursiva relativa à filosofia e à matriz ideológica do jornal "Aurora da Rua", por isso não se confunde a noção de indivíduo e de sujeito na Análise do Discurso. Neste sentido, ninguém é inocente porque, quando diz ou fala, quem fala é uma formação discursiva a que ele está vinculado, mesmo sendo, contraditoriamente, livre e assujeitado.
Esta noção de sujeito sofreu mutação dentro
da própria teoria, pois a AD pode ser dividida em três fases, cujas mudanças
são significativas para entender o conceito. A primeira fase, conhecida também
como AD1, foi concebida em 1969 com o livro: “Análise Automática do Discurso”
de Michel Pêcheux em que esse estudo se aproxima da corrente estruturalista,
propondo algoritmos para uma análise automática do discurso, inspirada no
método de Harris (Discourse Analysis, 1952). Concebia-se, assim, nesta época,
uma máquina estrutural- discursiva automática em que o sujeito era totalmente
assujeitado por uma única ideologia. Segundo a teoria, um sindicalista do PT ou
um católico estavam sempre presos à ideologia do partido ou da igreja; era
impossível imaginar um militante comemorando uma vitória no hotel Fiesta ou um
católico que pregasse a eutanásia ou o sexo fora do casamento.
Na segunda fase (AD2), iniciada em 1975, com o
livro: “Semântica e Discurso” de Pêcheux, a AD começa a rever a força do
estruturalismo, aprimorando e inserindo novos conceitos como a noção de formação discursiva
heterogênea, aproximando-se , com isso, do Michel Foucault. Recupera também as
noções de interdiscursividade e polifonia postulados por Mikhail Bakhtin.
Representou, portanto, um período de amadurecimento teórico para a terceira
fase, em que a teoria do discurso assumiu a sua forma atual: discurso como o
encontro da estrutura e do acontecimento.
Na terceira fase (AD3), estágio atual da AD,
foi introduzida uma inovação metodológica e o tratamento do sujeito, porque a
sua dispersão e errância são postas nas diferentes formações posições que o
sujeito pode ocupar na formação discursiva, deslocando-se em função das
relações que sustentam a estrutura e o acontecimento (PÊCHEUX, 1997).
Segundo Orlandi (2003), a ideologia não é
vista como um conjunto de representações, como visão de mundo ou como ocultação
da realidade, mas como elemento constitutivo da linguagem com a história em que
os sentidos são produzidos, em que o indivíduo é interpelado em sujeito pela
ideologia. “Esta é a marca da subjetivação: não há discurso sem sujeito. E não
há sujeito sem ideologia. Ideologia e
inconsciente estão materialmente ligados..” (ORLANDI, 2003, p. 47). Ao dizer, o
sujeito assume uma posição e dela enuncia, interpelado pela ideologia, ele se
imagina ser a origem do que diz e que suas palavras só podem ser ditas de
determinada forma e não de outra, configurando no que Pêcheux conceituou de
esquecimento 1 e 2. O primeiro é o esquecimento ideológico, refere-se à ilusão
de que o sujeito tem de ser o nascedouro do dizer, de que os sentidos brotam
dele, por isso nem a linguagem, nem os sentidos, nem os sujeitos são
transparentes, pois eles têm sua materialidade e se constituem em processos em
que a língua, a história e a ideologia concorrem conjuntamente para a produção
de sentidos. O segundo remete à ilusão de que o dizer do sujeito só pode ser
dito de apenas uma forma, esquecendo-se que existem outras possibilidades de
dizer um mesmo fato ou acontecimento.
Estas
representações do que seja língua, texto, discurso podem ajudar o desempenho do
professor de língua, porque nenhuma afirmação num texto, numa fotografia é
inocente, porque toda palavra, segundo Bakhtin (2002) é uma arena onde ocorrem
o embate ideológico de várias correntes. Análise linguística é interessante
porque, segundo a AD, no texto, o que existe é autor, com intencionalidade e
responsabilidade daquilo que ele diz, enquanto o sujeito só produz sentidos no
discurso. Assim, a leitura, em sala, ganha mais profundidade pelo fato de se
trabalharem os implícitos e os subentendidos, o efeito metafórico, procurando
identificar o processo discursivo em que se encontram o simbólico com a
história, produzindo os efeitos de sentido(s).
Para
quem trabalha não com aquisição de língua, mas com o próprio discurso em mídias
impressas ou virtuais, na área jurídica, em livro didático, em hipertexto, a AD
funciona como dispositivo teórico e analítico capaz de dirimir indagações dos
pesquisadores. Veja, por exemplo, o texto baixo, dito na Assembleia Legislativa
da Bahia pela Maria Lúcia Pereira, fundadora do jornal “Aurora da Rua” e
coordenadora do Movimento População de Rua, no dia 15 de junho numa sessão
especial dedicada ao movimento:
Dizemos sempre que o tempo de sopa e de cobertor acabou. Não queremos
mais isso (Palmas). Queremos o que nos foi negado há séculos: dignidade,
habitação, lazer, cidadania, respeito. Não estamos pedindo, estamos exigindo,
porque isso nos garante a Constituição. E somos brasileiros também. Não adianta falar de uma Bahia para todos se não inclui a população em
situação de rua. Não adianta falar de um Brasil sem miséria, se a população em
situação de rua não é o seu carro – forte, porque, senão, é um Brasil
mascarado. E isso eu disse à presidenta Dilma... Uma mulher que há 10 anos
estava nas ruas bebendo, drogada e não tinha absolutamente nada, a não ser,
talvez, o desejo de viver. Hoje sento com os ministros para discutir a política
da população de rua (Palmas)
Quando Lúcia fala “Não estamos
pedindo, estamos exigindo, porque isto nos garante a Constituição” ela se
significa pelo efeito da memória discursiva, de que outro discurso se origina o
seu dizer, ela apenas tem a ilusão de que o discurso é seu. O poder de suas
palavras se legitima pela formação discursiva da Constituição Federal e da “Declaração
Universal dos Direitos Humanos”, cap. I “Todas as pessoas nascem livres e
iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir
em relação umas às outras com espírito de fraternidade.” Aqui se evidencia que
o funcionamento discursivo do seu dizer se vincula a uma formação discursiva de
caráter político e jurídico. A sua identidade é a identidade do povo em situação
de rua que luta por políticas públicas de atendimento a este segmento social.
Não aceita nenhum tipo de assistencialismo, nenhuma “bolsa-esmola” para os
moradores de rua.
Agora, veja como a AD
pode trabalhar estas imagens abaixo descrevendo como ocorre o efeito de sentidos.
Fig. 2- Rede social |
Fig.3- Neimar crucificado |
O
efeito polissêmico da expressão “rede social” (figura 2) remete a duas
formações discursivas antagônicas, por isso provoca o riso. Ao ler o texto e as
imagens, você, por ter um dispositivo ideológico subjacente, faz um gesto de
interpretação de reprovação, cooperação ou acomodação. A polêmica está presente
na crucificação de Neimar (figura 3), porque a Igreja reagiu contra esta capa,
porque está jogo um embate ideológico. A frase: “Chamado de cai-cai, o craque
brasileiro vira bode expiatório em um esporte onde todos jogam sujo.” é bastante significativa.
Enfim, a AD significou muito para melhor desempenho de alunos e de professores tanto na ção do qualidade da leitura, pois se superou aquela máxima: " O que o texto quer dizer?" como na eficiência na produção de textos, sobretudo, na construção do discurso. Como disciplina, está em permanente evolução, dialogando com outras ciências da linguagem ou não em busca do aprimoramento metodológico e teórico.
Referências
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 9. Ed. São Paulo: Hucitec, 2002.
JAKOBSON, Roman.
Linguística e Comunicação.2.ed. São
Paulo: Cultrix, 1969.
ORLANDI, E. P. Análise de discurso:
princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2003.
PÊCHEUX, M. A análise automática do
discurso. In: GADET, F. & HAK , T. (Orgs.), Por uma
análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel
Pêcheux. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1983.
PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio.
Campinas,SP: Editora da Unicamp, 1997.
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