terça-feira, 23 de outubro de 2012


          CONCEPÇÕES DE LÍNGUA E O ENSINO DO PORTUGUÊS

            A concepção de língua interfere muito na produção de leitura ou mesmo da produção de textos, prejudicando o ensino e a aprendizagem de uma língua materna ou estrangeira, sobretudo, quando se dirige a alunos de Letras que, no processo de formação, não percebem esta realidade em sala de aula porque lhes falta prática. É comum o professor distribuir o texto e perguntar aos alunos: qual a mensagem do texto? O que o autor quis dizer?
1. Representação
            Segundo Mendes (2012), neste momento se materializa o primeiro conceito de língua como representação do pensamento em que predomina o sujeito psicológico, individual, dono da verdade e de suas ações. Este sujeito faz uma representação do mundo e exige que o seu interlocutor, no processo de compreensão, entenda tudo como foi imaginado pelo locutor. O texto passa a ser visto como um produto lógico do pensamento, cabendo leitor captar esta representação mental com suas intenções de produtor, numa atitude passiva e constrangedora.
            A leitura será apenas uma atividade de captação das ideias do autor, desconhecendo as experiências, os conhecimentos prévios, a interação que possam existir no leitor. Em aula de literatura, muitos professores mandam estudar toda biografia, o pensamento do autor, como Machado de Assis, para poder compreender “Memórias póstumas de Brás Cubas”.  Na interpretação de texto em prova é um horror, porque o professor só aceita a sua interpretação, desconhecendo outras representações de mundo. Veja esta tirinha:

           A expressão “Que decadência sofreu a geometria, senhor” não pode ser interpretada de uma única forma, pois existem elementos co-textuais e contextuais que podem produzir outros sentidos na frase. Outra situação, dado o texto, sobretudo em língua estrangeira, diante de uma palavra que o aluno não sabe o significado, a orientação é esta: consulte o dicionário. Será que, mesmo tendo dicionário, o texto não pode estar com alguma particularidade cultural?
2. Código 
            Por influência da teoria da comunicação (JAKOBSON, 1969), a língua foi considerada como código, apenas como instrumento de comunicação, por isso exige do leitor a capacidade de decodificar o sistema linguístico. A leitura passa a ser uma atividade de decifração daquilo que está escrito no texto. O sujeito pouco interfere na produção de sentido, porque o significado se encontra no texto. Aqui também há um desrespeito às vivências, ao conhecimento prévio do leitor. O interlocutor tem apenas o papel de reproduzir o que está no texto. Nas próprias salas de aula do Instituto de Letras, muitos professores, quando pedem resenhas de texto,  exigem a reprodução fiel da mensagem contida no texto, como existisse uma univocidade da língua e uma única interpretação. Imagine alguém lendo esta faixa, na entrada da universidade:

                                "DEFENDA A DEMOCRACIA,
                         DIGA NÃO À TENTATIVA DE GOLPE."

             Não basta só conhecer o código, sem saber o contexto que explicita o sentido da faixa. Estas palavras, escritas no fundo verde, podem não significar nada, pois carecem deste horizonte social de que fala Bakhtin(2002). No canto direito da faixa, havia um ícone com a inscrição APUF. Esta sigla significa “Associação dos Professores das Universidades Federais”. Mesmo assim, quem não for professor da universidade ou instituto federal também não vai entender nada. O sentido não surge só da organização das palavras numa estrutura abstrata da língua, mas da relação delas com a sua exterioridade. Para quem fez greve, compreende que este sindicato fez um acordo com o governo federal sem consultar as assembleias que têm o poder de decidir. Como os seus dirigentes são pelegos, ligados ao PT (Partido dos Trabalhadores), tentaram dar o golpe, mas a classe reagiu e destituiu a diretoria através de uma Assembleia Extraordinária.
           Em resposta à provocação, surgiu outra faixa na entrada da Universidade Federal da Bahia nesta mesma época com estes dizeres:

                        A DESTITUIÇÃO É LEGAL E LEGÍTIMA
                              RESPEITO À DEMOCRACIA
              
            Quem passa pode também não compreender os signos linguísticos e semióticos dos dois enunciados escritos. No lado direito, estava o mesmo ícone do sindicato APUF. Agora, existe uma diretoria provisória que mandou o recado de que a destituição da antiga diretoria não foi golpe; ao contrário, foi exercício da democracia. A cor vermelha talvez signifique luta, guerra contra a subserviência dos bajuladores do poder. “Toda refração ideológica do ser em processo de formação, seja qual for a natureza de seu material significante, é acompanhada de uma refração ideológica verbal, como fenômeno obrigatoriamente concomitante. A palavra está presente em todos os atos de compreensão e em todos os atos de interpretação” (BAKHTIN, 2002, p.38).
3. Interação
            A concepção de língua como interação dialógica considera os sujeitos como atores construtores sociais, sujeitos ativos que, dialogicamente, se constroem e são construídos no texto. De modo, há lugar, no texto, para toda uma gama de implícitos, por isso o sentido de um texto é construído na interação texto-sujeito, logo haverá multiplicidade de interpretações. Segundo Mendes (2012), esta concepção é que deve prevalecer nas aulas de língua. O foco não é mais o autor, nem o texto, mas esta interação autor-texto-leitor.
            Veja esta tirinha com Chico Bento, que derrubou o Secretário de Educação, o Sr. Adauer,  do governo Wagner, pois estava num folheto de promoção de um evento cultural:


         O sentido não está na simples tarefa de decodificar as palavras, inclusive o palavrão,  mas na interação porque se evidenciam duas realidades diferentes: o riquinho quer mostrar poder econômico, como uma forma de humilhar o Chico Bento, que reagiu de acordo com o nível cultural de homem matuto, que possui uma identidade linguística especial. O politicamente correto, talvez, propusesse outra expressão: coloque tudo num orifício do aparelho excretor, intitulado ânus.
4. Discurso
       Mesmo em respeito à experiência da professora Edleise Mendes, eu discordei do seu ponto de vista, porque eu achava que haveria um outro conceito de língua como materialidade do discurso, o que ela negou, dizendo que tudo era interação.  Numa sala de aula, o aluno conversando com o professor ou com os colegas pode estar vivendo uma situação de interação. O professor vai à escola e encontra o cartaz: “Não haverá aula porque o TRE solicitou as salas”, pode-se dizer que isto é uma interação? É apenas uma comunicação como aquela que o sujeito recebe o boleto da Coelba para pagar a luz no fim do mês. Não existe diálogo entre os sujeitos, o que provoca normalmente desentendimentos, conflitos. Na interação, pressupõe a ação responsiva do sujeito empírico.
           No discurso, os sujeitos quando falam assume uma posição discursiva (pai, professor, funcionário público) porque estão vinculados a uma determinada matriz discursiva que lhes pede coerência e obediência. Neste sentido, eles não têm consciência disto, Pêcheux (1997) vai chamar isto de esquecimento. Esta visão da língua implica assumir posturas metodológicas importantes, porque vai pode admitir a polissemia, a paráfrase nas interpretações de textos.
                                                         





F
      Veja estes dois anúncios da Du Loren que já foram censurados:

Não basta só decodificar as palavras acima, nem        a interação para compreender os sentidos na materialidade dos textos verbal e visual. Se o poder estatal pode pacificar uma favela inteira, como a Rocinha, no Rio  de Janeiro ( Figura 1), ele é impotente diante de uma mulher negra, usando a lingerie da marca Du Loren. Este poder (“Quero ver dominar”) não decorre porque é mulher, mas porque está vestida com esta lingerie. Alguém pode considerar uma depreciação à mulher. O enunciador transfere o sentido de “dominar” que é do tráfico para a marca do produto, porque se prende a uma determinada formação discursiva que legitima este dizer. A expressão do rosto da mulher de desdém, segurando o quepe do soldado na mão esquerda remete às determinações que vêm do inconsciente, da memória, do interdiscurso.
           Na segunda imagem (Figura 2), a interação não é suficiente para entender o(s) sentido(s) da frase: “Você não sabe do que a Du Loren é capaz!” Uma mulher vestida com a lingerie Du Loren é capaz de despertar o desejo sexual de outra mulher.  A linguagem, as pessoas e os sentidos não são transparentes, mas opacos, por isso estas representações em aulas de português, espanhol, inglês têm que levar em conta não só a questão da interculturalidade, mas também a discursividade em que se encontram os sujeitos.
            Assim, é importante estudar a língua como materialidade do discurso, pois, para estimular a produção de leitura ou a produção de textos, é necessário aprender conceitos como condições de produção, posição discursiva, formação discursiva, formação imaginária que podem ajudar a compreender como os sujeitos se significam no discurso. 

Referências
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 9. Ed. São Paulo: Hucitec, 2002.
JAKOBSON, R. Linguística e Comunicação. 9.ed. São Paulo: Hucitec, 1969
MENDES, E. O conceito de língua em perspectiva histórica: reflexos no ensino e na formação de professores de português. In: LOBO, Tânia et alii. Linguística histórica, história das línguas e outras histórias. Salvador-BA: EDUFBA, 2012.
PÊCHEUX, M. A análise automática do discurso. In: GADET, F. & HAK , T. (Orgs.), Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1983.
PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas,SP: Editora da Unicamp, 1997.




Um comentário:

  1. O texto surgiu em decorrência da disciplina: Seminário Avançados I do Doutorado em Língua e Cultura 2012 na Ufba

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