CONCEPÇÕES DE LÍNGUA E O ENSINO DO PORTUGUÊS
A
concepção de língua interfere muito na produção de leitura ou mesmo da produção
de textos, prejudicando o ensino e a aprendizagem de uma língua materna ou
estrangeira, sobretudo, quando se dirige a alunos de Letras que, no processo de
formação, não percebem esta realidade em sala de aula porque lhes falta
prática. É comum o professor distribuir o texto e perguntar aos alunos: qual a
mensagem do texto? O que o autor quis dizer?
1. Representação
Segundo
Mendes (2012), neste momento se materializa o primeiro conceito de língua como
representação do pensamento em que predomina o sujeito psicológico, individual,
dono da verdade e de suas ações. Este sujeito faz uma representação do mundo e
exige que o seu interlocutor, no processo de compreensão, entenda tudo como foi
imaginado pelo locutor. O texto passa a ser visto como um produto lógico do
pensamento, cabendo leitor captar esta representação mental com suas intenções
de produtor, numa atitude passiva e constrangedora.
A leitura será apenas uma atividade
de captação das ideias do autor, desconhecendo as experiências, os
conhecimentos prévios, a interação que possam existir no leitor. Em aula de
literatura, muitos professores mandam estudar toda biografia, o pensamento do
autor, como Machado de Assis, para poder compreender “Memórias póstumas de Brás
Cubas”. Na interpretação de texto em
prova é um horror, porque o professor só aceita a sua interpretação,
desconhecendo outras representações de mundo. Veja esta tirinha:
A expressão “Que decadência sofreu
a geometria, senhor” não pode ser interpretada de uma única forma, pois existem
elementos co-textuais e contextuais que podem produzir outros sentidos na
frase. Outra situação, dado o texto, sobretudo em língua estrangeira, diante de
uma palavra que o aluno não sabe o significado, a orientação é esta: consulte o
dicionário. Será que, mesmo tendo dicionário, o texto não pode estar com alguma
particularidade cultural?
2. Código
Por influência da
teoria da comunicação (JAKOBSON, 1969), a língua foi considerada como código,
apenas como instrumento de comunicação, por isso exige do leitor a capacidade
de decodificar o sistema linguístico. A leitura passa a ser uma atividade de
decifração daquilo que está escrito no texto. O sujeito pouco interfere na
produção de sentido, porque o significado se encontra no texto. Aqui também há
um desrespeito às vivências, ao conhecimento prévio do leitor. O interlocutor
tem apenas o papel de reproduzir o que está no texto. Nas próprias salas de
aula do Instituto de Letras, muitos professores, quando pedem resenhas de
texto, exigem a reprodução fiel da
mensagem contida no texto, como existisse uma univocidade da língua e uma única
interpretação. Imagine alguém lendo esta faixa, na entrada da universidade:
"DEFENDA A DEMOCRACIA,
DIGA NÃO À TENTATIVA DE GOLPE."
"DEFENDA A DEMOCRACIA,
DIGA NÃO À TENTATIVA DE GOLPE."
Não basta só conhecer o código, sem
saber o contexto que explicita o sentido da faixa. Estas palavras, escritas no fundo verde, podem não significar nada, pois
carecem deste horizonte social de que fala Bakhtin(2002). No canto direito da
faixa, havia um ícone com a inscrição APUF. Esta sigla significa “Associação
dos Professores das Universidades Federais”. Mesmo assim, quem não for
professor da universidade ou instituto federal também não vai entender nada. O
sentido não surge só da organização das palavras numa estrutura abstrata da
língua, mas da relação delas com a sua exterioridade. Para quem fez greve,
compreende que este sindicato fez um acordo com o governo federal sem consultar
as assembleias que têm o poder de decidir. Como os seus dirigentes são pelegos,
ligados ao PT (Partido dos Trabalhadores), tentaram dar o golpe, mas a classe
reagiu e destituiu a diretoria através de uma Assembleia Extraordinária.
Em resposta à provocação, surgiu
outra faixa na entrada da Universidade Federal da Bahia nesta mesma época com
estes dizeres:
A DESTITUIÇÃO É LEGAL E LEGÍTIMA
RESPEITO À DEMOCRACIA
Quem
passa pode também não compreender os signos linguísticos e semióticos dos dois
enunciados escritos. No lado direito, estava o mesmo ícone do sindicato APUF.
Agora, existe uma diretoria provisória que mandou o recado de que a destituição
da antiga diretoria não foi golpe; ao contrário, foi exercício da democracia. A
cor vermelha talvez signifique luta, guerra contra a subserviência dos
bajuladores do poder. “Toda refração ideológica do ser em processo de formação,
seja qual for a natureza de seu material significante, é acompanhada de uma
refração ideológica verbal, como fenômeno obrigatoriamente concomitante. A
palavra está presente em todos os atos de compreensão e em todos os atos de
interpretação” (BAKHTIN, 2002, p.38).
3. Interação
A concepção de língua como interação dialógica considera os sujeitos como
atores construtores sociais, sujeitos ativos que, dialogicamente, se constroem
e são construídos no texto. De modo, há lugar, no texto, para toda uma gama de
implícitos, por isso o sentido de um texto é construído na interação
texto-sujeito, logo haverá multiplicidade de interpretações. Segundo Mendes
(2012), esta concepção é que deve prevalecer nas aulas de língua. O foco não é
mais o autor, nem o texto, mas esta interação autor-texto-leitor.
Veja
esta tirinha com Chico Bento, que derrubou o Secretário de Educação, o Sr.
Adauer, do governo Wagner, pois estava
num folheto de promoção de um evento cultural:
O sentido não está na simples tarefa
de decodificar as palavras, inclusive o palavrão, mas na interação porque se evidenciam duas
realidades diferentes: o riquinho quer mostrar poder econômico, como uma forma
de humilhar o Chico Bento, que reagiu de acordo com o nível cultural de homem
matuto, que possui uma identidade linguística especial. O politicamente
correto, talvez, propusesse outra expressão: coloque tudo num orifício do
aparelho excretor, intitulado ânus.
4. Discurso
Mesmo em respeito à experiência da professora Edleise Mendes, eu
discordei do seu ponto de vista, porque eu achava que haveria um outro conceito
de língua como materialidade do discurso, o que ela negou, dizendo que tudo era
interação. Numa sala de aula, o aluno
conversando com o professor ou com os colegas pode estar vivendo uma situação
de interação. O professor vai à escola e encontra o cartaz: “Não haverá aula
porque o TRE solicitou as salas”, pode-se dizer que isto é uma interação? É
apenas uma comunicação como aquela que o sujeito recebe o boleto da Coelba para
pagar a luz no fim do mês. Não existe diálogo entre os sujeitos, o que provoca
normalmente desentendimentos, conflitos. Na interação, pressupõe a ação
responsiva do sujeito empírico.
No discurso, os sujeitos quando
falam assume uma posição discursiva (pai, professor, funcionário público)
porque estão vinculados a uma determinada matriz discursiva que lhes pede
coerência e obediência. Neste sentido, eles não têm consciência disto, Pêcheux
(1997) vai chamar isto de esquecimento. Esta visão da língua implica assumir
posturas metodológicas importantes, porque vai pode admitir a polissemia, a
paráfrase nas interpretações de textos.
Não basta só decodificar as palavras
acima, nem a interação para compreender os sentidos na materialidade dos textos
verbal e visual. Se o poder estatal pode pacificar uma favela inteira, como a
Rocinha, no Rio de Janeiro ( Figura 1), ele é impotente diante de uma mulher
negra, usando a lingerie da marca Du Loren. Este poder (“Quero ver dominar”)
não decorre porque é mulher, mas porque está vestida com esta lingerie. Alguém
pode considerar uma depreciação à mulher. O enunciador transfere o sentido de
“dominar” que é do tráfico para a marca do produto, porque se prende a uma
determinada formação discursiva que legitima este dizer. A expressão do rosto
da mulher de desdém, segurando o quepe do soldado na mão esquerda remete às
determinações que vêm do inconsciente, da memória, do interdiscurso.
Na segunda imagem (Figura 2), a
interação não é suficiente para entender o(s) sentido(s) da frase: “Você não
sabe do que a Du Loren é capaz!” Uma mulher vestida com a lingerie Du Loren é
capaz de despertar o desejo sexual de outra mulher. A linguagem, as pessoas e os sentidos não são
transparentes, mas opacos, por isso estas representações em aulas de português,
espanhol, inglês têm que levar em conta não só a questão da interculturalidade,
mas também a discursividade em que se encontram os sujeitos.
Assim, é importante estudar a língua
como materialidade do discurso, pois, para estimular a produção de leitura ou a
produção de textos, é necessário aprender conceitos como condições de produção,
posição discursiva, formação discursiva, formação imaginária que podem ajudar a
compreender como os sujeitos se significam no discurso.
Referências
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 9. Ed. São Paulo: Hucitec, 2002.
JAKOBSON, R. Linguística e Comunicação. 9.ed. São Paulo: Hucitec, 1969
MENDES, E. O
conceito de língua em perspectiva histórica: reflexos no ensino e na formação
de professores de português. In: LOBO, Tânia et alii. Linguística histórica,
história das línguas e outras histórias. Salvador-BA: EDUFBA, 2012.
PÊCHEUX, M. A análise automática do
discurso. In: GADET, F. & HAK , T. (Orgs.), Por uma
análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel
Pêcheux. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1983.
PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio.
Campinas,SP: Editora da Unicamp, 1997.
O texto surgiu em decorrência da disciplina: Seminário Avançados I do Doutorado em Língua e Cultura 2012 na Ufba
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