A LUTA DE SUPERAÇÃO DE UM EX-MORADOR DE RUA: DA DROGA À VIDA DE VENDEDOR DO JORNAL " AURORA DA RUA"
Fig.1. Retorno à família |
A manchete do jornal Aurora da Rua nº 33 foi a seguinte: SOL
VOLTA A BRILHAR. Conheça histórias de pessoas, que nas noites das ruas,
perderam o aconchego familiar, mas conseguiram dar a volta por cima e trilham o caminho da restauração dos laços afetivos rompidos.
Na parte interna em que existe uma produção
coletiva existem muitas histórias de superação, mas há um texto na coluna:
“Brilho da Aurora”, assinada por uma ex-moradora de rua, chamada Noely Novais,
residente na Comunidade da Trindade, cujo título era este: “O amor pelos
meus filhos me faz viver”. Ela conta
a história de Nelson Carvalho, que aparece na foto abaixo vendendo o
jornal em eventos culturais. Ele é uma pessoa que todos gostam de ter por
perto, porque é solidário e proativo, não mede esforços para ajudar os outros.
Fig.2. Nelson vendendo jornal |
Nem
sempre foi assim, no passado não tão distante, ele viu a sua vida desmoronar.
Dependente químico por 19 anos, a droga veio como uma avalanche e devastou a
sua vida: “Perdi o convívio familiar, emprego, estudo, saúde e principalmente a
dignidade. Saí de casa, abandonei meus filhos e a mim mesmo”, desabafa Nelson
“Achei
que poderia parar quando quisesse, mas me enganei”, afirma. Ele passou por
albergues, centros de recuperação e finalmente foi parar na rua, situação que perdurou por cinco anos. “Ficar longe dos meus filhos foi a maior tortura. Sentia muitas saudades
deles, mas não queria que eles me vissem naquela condição. Então comecei a acompanhá-los
de longe. Muitas vezes ia à escola onde eles estudavam e escondido os via. Era
assim que eu matava a saudade”, relata.
Chegou
um momento que ele não aguentou mais e, então, resolveu procurar ajuda de fato.
Frequentou igreja evangélica, e lá chegou à conclusão que só fé em Deus e muita
força de vontade o libertariam daquela condição. Um ferimento no pé, decorrente
do trabalho com reciclagem, fez com que ele chegasse a uma comunidade que
prestou ajuda. “Na comunidade recebi amor e apoio para curar não só aquele
ferimento no pé, mas também as feridas da alma”, recorda. Hoje ele mora nesta comunidade que
acolhe outras pessoas em situação de rua e conta que, através das partilhas
diárias, vem-se fortalecendo e vislumbra um novo tempo. A narradora continua a
falar de Nelson:
Quanto ao plano da expressão, o texto é
relato jornalístico com duas vozes: a narradora e o personagem Nelson que fala
de sua trajetória de vida. Linguagem coloquial, uso do discurso direto e do
discurso indireto são outras características. Quanto ao plano do conteúdo, a
leitura profunda (estrutura fundamental) trabalha as contradições temáticas.
“Sol voltou a brilhar” acompanhada de ícones amarelos (sol, raios) em contraste
com o chão com tons verdes azuis e amarelos parecendo uma tela impressionista.
Nesta afirmação, há também uma negação: se o sol volta a brilhar, logo antes
não brilhava, havia escuridão. Na capa do jornal, há um casal de costas
acompanhado de uma menina que se imagina ser filha, com roupas alegres, de mãos
dadas, numa alusão de retorno. Alguns valores surgem como dicotomias:
desintegração> integração; morte > vida; sofrimento > alegria; lua
(escuridão)> sol (luz). De qualquer maneira, não se sabe se o que se nega ou
afirma se constitui numa verdade, mentira, falsidade ou segredo segundo o
quadro semiótico (semântica fundamental). Veja o quadro
A linha horizontal (ser – parecer) indica
contrariedade, o que não significa oposição, apenas são duas realidades
diferentes da essência humana: vida. A linha horizontal (não parecer–não ser)
indica subcontrariedade. As linhas perpendiculares sugerem contradições porque
o contrário de ser não é parecer, mas não-ser; o contrário de parecer não é
ser, mas não-parecer. Na linha vertical, observam-se as afirmações porque ser é
não parecer; parecer é não ser. Quando alguma coisa parece, mas não é, ela
passa a se constituir numa mentira; se algo não parece e não faz questão de ser
significa falsidade; se alguma coisa busca ser sem se preocupar em não parecer
significa segredo; se algo busca ser, procurando parecer passa a ser a mais
pura verdade.
No
texto em análise, há duas realidades que se contrapõem: vida (a luz, o sol)
> morte (escuridão, a lua), mas pode acontecer um simulacro: o jornal pode
produzir estes textos com esta representação positiva de realidade e não
retratar a viva realidade da comunidade de que fala, portanto isto seria uma
grande mentira; se o jornal produz este material em que não faz questão nem de
parecer, nem de ser, então o que ocorre é uma falsidade. Se, ao contrário, o
jornal produz esta representação do mundo e não faz questão de não-parecer,
logo se está diante de um segredo; se os textos produzidos procuram ser e fazem
questão de parecer o que são significa dizer que se fala a verdade. Para
verificar o grau de veridicção destes textos (fotos, relatos), faz necessário
continuar o percurso gerativo de sentido, indo para estrutura sêmio-narrativa.
No
nível narrativo, o sujeito se preocupa com um objeto-valor que pode ser um bem
material como pagar uma dívida ou viajar ou imaterial: ser feliz, resgatar a
autoestima, restabelecer os laços familiares. O percurso significa o sujeito
sair de um ponto inicial (enunciado de estado) em que predomina a carência, a
falta daquilo que o faz sofrer. A tensão do sujeito não pode ficar apenas no
desejo, na paixão (querer), na consciência do ético, da obrigação (dever), por
isso tem partir para a ação concreta com a intenção de atingir o objetivo
(enunciado de ação), mas, para isto, necessita de saber como agir (saber) e,
finalmente, alca
No texto “O amor pelos meus filhos me faz
viver”, o Nelson estava numa situação de abandono, morando nas ruas, com um
ferimento no pé (disforia); de repente, resolveu mudar e buscar a cura, o
acolhimento, o carinho (euforia), o que ocorreu, pois vive na Comunidade da
Trindade e vende o jornal “Aurora da Rua”. O texto descreve como se deu este
percurso até a comunidade, mas pode acontecer que Nelson esteja vivendo hoje
outro percurso gerativo de um dia voltar a viver com a família. Para a análise,
o que interessa é o que está escrito no jornal.
Fig. 2 Vendedores no Rio Vermelho |
Fig.1 - Nelson mostrando o jornal "Aurora da Rua" |
Quatro são os passos para a
consecução do percurso gerativo de sentido: a manipulação, a competência, a
performance e a sanção. A manipulação que o sujeito desenvolve em relação ao
enunciatário, no nosso caso, o leitor do jornal pode ser de quatro modalidades:
sedução, tentação, provocação e intimidação. A conceituação teórica é bem
diferente da noção do senso comum, porque , quando o sujeito enaltece um
aspecto positivo do outro, ocorre a sedução (Ex. Você é inteligente, que
sorriso! Vamos sair?); se aponta algum tipo de vantagem positiva ou negativa, o
que acontecendo é a tentação (Ex. Se vier, vamos conhecer Paris); se aponta
algum aspecto negativo do outro, pode ter certeza de que está acontecendo uma
provocação (Ex. Você não é capaz de entregar o trabalho na data marcada e o
sujeito cumpre o prometido); se você aponta o castigo como forma de exigir
mudança de comportamento do interlocutor, está diante da intimidação.
No texto fotográfico, as cores
amarelas, o brilho do sol, a imagem da família unida, o chão colorido, tudo
aparece como efeito de tentação, e não sedução, o que pode incutir no leitor
uma atitude de cooperação, acomodação ou confronto. No texto escrito, a busca
pela igreja evangélica, o acolhimento pela Comunidade da Trindade, a cura do ferimento,
o carinho recebido, ajuda financeira à família são aspectos positivos
(tentação) que podem convencer o morador de rua como leitor a ser o mesmo que
Nelson. A intencionalidade, no sentido fenomenológico, pode ser verificada na
figura 1 acima, porque Nelson, como ex-morador de rua, ao mostrar o jornal,
pode estar dizendo ao outro que ele também pode sair da miséria em que se
encontra, não por causa de uma determinada política pública de acolhimento, mas
porque existe uma valorização de si mesmo como pessoa (sedução). A imagem dos
quatro ex-moradores de rua no Rio Vermelho (figura 2) pode funcionar, por
efeito metonímico, numa tentação ou sedução para quem é morador de rua. Isto
significa muito para a semiótica que deixou de ser uma disciplina imanentista
para se relacionar com o exterior da língua, logo uma visão pós-estruturalista.
Quanto às competências, Nelson
demonstrou vontade (querer), mas transformou o desejo em ação (querer>fazer), mas também sabia que
era uma obrigação, afinal ele é pai e marido (dever), partiu para ação
(dever>fazer). Falta a competência de buscar os meios para atingir o seu
objetivo (saber), mas não ficou no nível da consciência, concretizou os saberes
(saber>saber fazer) e, afinal, tem a certeza de que chegou à performance, logo
mereceu o prêmio (poder>poder fazer) quando diz: “Graças a Deus, hoje quando
olho para mim vejo vida novamente. A vida que tinha perdido. Estou bem,
caminhando resoluto. O amor pelos meus filhos me faz viver.”.
O nível mais importante é o
discursivo porque aqui o discurso produz os sentidos, afinal pode-se responder
às indagações se o que está escrito no texto é verdade, mentira, segredo ou
falsidade. O sujeito se encontra num situação de enunciação. Aqui são analisados dois aspectos: os actantes
pessoais ( eu e tu), espaciais e temporais (sintaxe discursiva). O “eu”
enunciador ( o jornal) é diferente do “eu” empírico que é Noely que, por efeito de debreagem está na 3ª
pessoa falando de Nelson. O espaço e o tempo são elementos que ajudam a
produzir sentidos, pois a Comunidade da Trindade, o jornal foram pontos chaves
na superação de Nelson. E, finalmente, as figuras e temas (semântica
discursiva) completam o quadro. As figuras são concretas como o Nelson, o
jornal, a comunidade da Trindade. Se a compreensão ficar só neste nível,
admite-se a transparência da linguagem, mesmo havendo uma isotopia, i.e. uma
coerência figurativa. Como na AD, ocorre também o efeito metafórico, porque
cada figura se relaciona a uma temática específica, acontecendo, portanto, a
produção de sentidos do discurso. A
palavra discurso, na semiótica, tem o mesmo sentido de texto, o que não ocorre
na AD, porque o texto é a materialização do discurso. A interpretação não
acontece apenas pela imanência do texto, mas também pelo contexto histórico,
pelo conhecimento enciclopédico, pela memória em que se encontra o
interpretante, seja um leitor do jornal, seja um pesquisador.
Na fase inicial da semiótica
greimasiana, sob domínio do estruturalismo, podia-se até admitir a univocidade
de sentido do signo linguístico (semiótica canônica), mas hoje isto não
acontece mais, por influência das teorias enunciativas e discursivas. Neste
sentido, Nelson pode representar o povo excluído, este ser invisível que
perambula pela cidade; o jornal “Aurora da Rua” e a Comunidade da Trindade não
representariam nenhuma instituição pública ou privada, mas um grupo religioso
que acredita no lema bíblico: “Levanta-te e anda” sem qualquer caráter
assistencialista, orientado por um monge peregrino, chamado irmão Henrique.
Para se fechar o círculo
hermenêutico, volta-se para o início da análise quando se procurava examinar a
veridicção do conteúdo do texto. Até que ponto, o relato sobre Nelson é uma
verdade, mentira, segredo ou falsidade? Pelo que se conhece da cidade de
Salvador, muitos Nelsons andam por aí em busca de uma superação, não por causa
de um resgate de políticas públicas, nem a doação de um teto, mas porque se buscou resgatar a
dignidade, a confiança em si mesmo, pela aquisição de um trabalho, por isso
saíram das ruas e estão trabalhando na construção do estádio da Fonte Nova, ou
pelo abandono das drogas.
Várias instituições trabalham com a
população de rua ainda naquela visão paternalista e assistencialista de sopão,
cesta básica, mas duas chamam atenção: o Movimento População de Rua, dirigido
por Maria Lúcia Pereira que tem um caráter político, porque exige um
cumprimento da legislação vigente junto ao governo municipal, estadual e
federal; o jornal “Aurora da Rua” e a Comunidade da Trindade junto com o
projeto “Levanta-te e anda” da Ação Social da Arquidiocese (ASA) que trabalham
mais a consciência das pessoas em situação de risco, a construção da
autoestima, desde que o morador queira ser ajudado. Não se ajuda quem não quer
ser ajudado. Se a pessoa está com fome, alimenta-se, mas não se
institucionaliza o ato de pedir esmola.
Referências
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 9. Ed. São Paulo: Hucitec, 2002.
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria do discurso: fundamentos
semióticos. 3. Ed. São Paulo: Humanitas, 2001.
ORLANDI, E. P. Análise de discurso:
princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2003.
PÊCHEUX, M. A análise automática do
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PAVEAU,
Marie-Anne. As grandes teorias
linguísticas: da gramática comparativa à pragmática. São Carlos: Clara Luz,
2006.