Por José Gomes Filho
Aqui se considera que toda leitura é uma enunciação entre um sujeito (leitor) e um outro sujeito (autor) mediada por enunciados materializados na forma, na estrutura e numa linguagem de um texto, portanto num gênero textual específico, usado como prática social numa determinada formação social e num momento histórico-social específico. Neste nível o sujeito é empírico e psicológico (eu) em relação ao outro (tu), mas não se constitui ainda um discurso.
A enunciação só é discursiva quando os sujeitos (leitor e autor) dizem o que dizem a partir de uma determinada posição social ou discursiva (professor x aluno; pai x filho; marido x mulher; patrão empregado; leitor/autor) em que cada um, deste lugar, nem tudo pode dizer ou falar ao outro, sob pena de sofrer represália ou interdição. No terreno do esporte, imagine um torcedor do Bahia elogiando as instalações do Barradão, estádio do Vitória, seu desafeto esportivo, será, no mínimo, vaiado e obrigado a calar a boca.
Neste aspecto, o sujeito do discurso não tem consciência da sua subordinação a uma instância em que ela é composta de crenças e de valores que se chama de “formação discursiva” que legitima aquilo que ele diz ou pratica como ação. Isto acontece porque esta construção discursiva é influenciada pela “formação ideológica”, que termina obrigando o indivíduo a sujeitar total ou parcialmente a ela, em termos de cooperação (bom sujeito), acomodação (mau sujeito) ou conflito (inimigo). Para compreender esta leitura discursiva, leia o texto abaixo:
PASSEIO NOTURNO I
Rubem Fonseca
Cheguei em casa carregando a pasta cheia de papéis, relatórios, estudos, pesquisas, propostas, contratos. Minha mulher via as letras e números, eu esperava apenas. Você não para de trabalhar, aposto que os teus sócios não trabalham nem a metade e ganham a mesma coisa, entrou a minha mulher na sala com um copo na mão, já posso mandar servir o jantar? A copeira serva à francesa, meus filhos tinham crescido, eu e a minha mulher estávamos gordos. É aquele vinho que você gosta, ela estalou a língua com prazer. Meu filho me pediu dinheiro quando estávamos no cafezinho, minha filha me pediu dinheiro na hora do licor. Minha mulher nada pediu, nós tínhamos conta bancária conjunta. Vamos dar uma volta de carro?, convidei. Eu sabia que ela não ia, era hora da novela. Não sei que graça você acha em passear de carro todas as noites, também aquele carro custou uma fortuna, tem que ser usado, eu é que cada vez me apego menos aos bens materiais, minha mulher me respondeu. Os carros dos meninos bloqueavam a porta da garagem impedindo que tirasse o meu. Tirei os carros dos dois, botei na rua, tirei o meu, botei na rua, coloquei os dois carros novamente na garagem, fechei a porta, essas manobras todas me deixaram levemente irritado, mas ao ver os para-choques salientes do meu carro, o reforço especial duplo de aço cromado, senti o coração bater apressado de euforia. Enfiei a chave na ignição, era um motor poderoso que gerava a sua força em silêncio, escondido no capô aerodinâmico. Saí, como sempre sem saber para onde ir, tinha que ser uma rua deserta, nesta cidade que tem mais gente do que moscas. Na avenida Brasil, ali não podia ser, muito movimento. Cheguei numa rua mal iluminada, cheia de árvores escuras, o lugar ideal. Homem ou mulher? Realmente não fazia grande diferença, mas não aparecia ninguém em condições, comecei a ficar tenso, isso sempre acontecia, eu até gostava, o alívio era maior. Então vi a mulher, podia ser ela, ainda que mulher fosse menos emocionante, por ser mais fácil. Ela caminhava apressadamente, carregando um embrulho de papel ordinário, coisas de padaria ou de quitanda, estava de saia e blusa, andava depressa, havia árvores na calçada, de vinte em vinte metros, um interessante problema a exigir uma grande dose de perícia. Apaguei as luzes do carro e acelerei. Ela só percebeu que eu ia para cima dela quando ouviu o som da borracha dos pneus batendo no meio-fio. Peguei a mulher acima dos joelhos, bem no meio das duas pernas, um pouco mais sobre a esquerda, um golpe perfeito, ouvi o barulho do impacto partindo os dois ossos, dei uma guinada rápida para a esquerda, passei como um foguete rente a uma das árvores e deslizei com os pneus cantando, de volta para o asfalto. Motor bom, o meu, ia de zero a cem quilômetros em nove segundos. Ainda deu para ver que o corpo todo desengonçado da mulher havia ido parar, colorido de sangue, em cima de um muro, desses baixinhos de casa de subúrbio. Examinei o carro na garagem. Corri orgulhosamente a mão de leve pelos para-lamas, os para-choques sem marca. Poucas pessoas, no mundo inteiro, igualavam a minha habilidade no uso daquelas máquinas. A família estava vendo televisão. Deu a sua voltinha, agora está mais calmo?, perguntou minha mulher, deitada no sofá, olhando fixamente o vídeo. Vou dormir, boa noite para todos, respondi, amanhã vou ter uma dia terrível na companhia. (CONTOS REUNIDOS. São Paulo, Cia das Letras, 1.edição)
O texto retrata uma família de classe média alta com expressivo poder econômico em que as relações humanas entre marido x mulher, pai x filhos são intermediadas pelo dinheiro. Não se sentem unidas pelo carinho, pelo afeto, evidenciando conflito entre o “ter” em detrimento do “ser”.As figuras (marido, mulher, filhos), como sujeitos do discurso, não apresentam nenhuma consciência da “formação discursiva” que legitima a alienação da realidade (mulher e filhos) ou a destruição dos outros (o corpo colorido de sangue). Cada leitor, inclusive você, pode atribuir esta formação discursiva à competição capitalista do mundo moderno, a um materialismo consumista do mundo contemporâneo.
Considerando a temática, a figura do marido pode representar o vazio existencial do homem moderno que descarrega as suas frustrações provocadas pela família ou pelo trabalho estressante numa agressividade gratuita no trânsito, na empresa ou nas ruas. Não é um comportamento típico de uma determinada classe social, mas de todos nós que vivemos em grandes metrópoles. Não se mata o outro somente quebrando os seus ossos com um carro possante, entretanto isto ocorre à medida que cada um demite o funcionário sem justa causa, fala mal do colega de trabalho ou demonstra indiferença às pessoas que nos rodeiam.
O texto não transmite somente informação, mas “efeitos de sentidos” historicamente constituídos pela linguagem como pelas condições de produção, compreendendo a situação da enunciação ( carros, jantar à francesa, novelas, noite) e o contexto histórico-social (século XX/XXI). Nem as pessoas, nem o que elas dizem são transparentes (literalidade), pois o sentido está no implícito. As figuras da mãe e dos filhos podem representar a alienação consumista do mundo capitalista, mas isto não está escrito no texto.
Enfim, a leitura discursiva leva o leitor para uma compreensão maior e melhor daquilo que está escrito no texto. A posição discursiva e ideológica do leitor influencia a construção do(s) sentido(s), o que pode ser comprovado com outras possibilidades interpretativas, como esta que acabamos de efetuar. Muito mais do que a interação, a sua posição ideológica interfere decisivamente na compreensão e interpretação de textos.
Gostaria de está pabenizado o senhor professor pelo excelente conteudo contido em seu blog,pelo simples fato de tazer utilidades para o melhoramento da analise de textos e a leiutura.Mas agora vou te fazer um pedido coloca trechos do livro o largo da palma de adonias filho com analise para abertura de "apetite" de leitura.Gabriel Batista 11821 IFBa .
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